Jornal Estado de Minas

Moradores do Papagaio fazem teatro na Casa do Beco

Moradores do Papagaio, comunidade do Aglomerado Santa Lúcia (BH), se realizam fazendo teatro na Casa do Beco, instituição que nasceu da luta de um menino rebelde e idealista

Arnaldo Viana

"A gente queria o morro nos cadernos de cultura e não nas páginas policiais. E, felizmente, as portas do mundo cultural se abriram" Nil César, de 37 anos, coordenador da Casa do Beco - Foto: Cristina Horta/EM/D.A Press


Maria do Carmo, Maria do Rosário, Cruzelina, Maurina e Geralda são donas de casaTodos os dias elas fazem tudo igual, não necessariamente como na canção de Chico BuarqueArrumam os quartos, varrem o chão, limpam o banheiro e a cozinhaPreparam o almoço e lavam a louça e as roupas da famíliaSeria justo que, depois de tudo isso, cruzassem os braçosEsperar pela monotonia? Que nada! Findas as tarefas domésticas, elas e outras mulheres descem os becos enladeirados do Morro do Papagaio, na Região Centro-Sul de BH, para aprender a arte e as técnicas do teatro.

Não são celebridades e não buscam famaNão conhecem o lado glamouroso das artes cênicas e não fazem questãoO destino é a Casa do Beco, no pé do morroNas aulas, recitam temas que nem precisavam ser escritosO texto é a realidade delas, da comunidade, as afrontas, as distorções e as conquistas sociais, as transformações que a sobrevivência exigeE o palco é a terapia, o lazer, a escada para a autoestima, uma janela aberta para além dos horizontes da solidão, do preconceito, da discriminação e da rejeição
Cidadania com arteÉ no que elas acreditam, como diz a panfletagem da casa.

A Casa do Beco é um reduto cultural criado em 2003 pelo Grupo BecoSua história está intimamente ligada à de seu coordenador, Nil César, de 37 anos, nascido no Morro do PapagaioFilho de pedreiro e de doméstica, começou a sentir que a vida lhe seria difícil antes mesmo de pôr os pés na ruaO consumo de bebida alcoólica fazia do pai um homem violento dentro de casaDa mãe, também dependente de álcool e vítima de maus-tratos, é que vinha um pouco de afeto.

Nil saiu à rua para se matricular no ensino fundamental da Escola Estadual Paula Frassinetti, que funcionava dentro do Colégio Santa DoroteiaA escola foi outro desafio para eleFranzino, tornou-se alvo de bullying dos colegasDas disciplinas, a de que menos gostava era educação artística“Detestava aquelas aulas em que o professor ou professora mandava os alunos desenhar florezinhas, bichinhos
Não havia preocupação com conteúdo, estética, qualidade.”

Ironicamente, Nil odiava teatro“É verdade.” Mas foi o teatro que o convenceu a frequentar as aulas de educação artística“Avisaram que faltar à aula resultava em bombaE o professor, Eder Batista, havia introduzido o teatro na disciplinaEra tão meticuloso que ensaiava uma peça durante seis meses antes de encená-laQuando entrei na sala, o teatro já estava avançadoE como havia faltado o menino que representava um moleque de rua, que no final se encontrava com Jesus, o professor me deu o papel.”

Nil não ganhou o papel porque o professor era bonzinho ou via nele uma promessa“Fui indicado pelos colegasÉ aquela história do bullyingEu não havia ensaiadoQueriam que eu pagasse mico.” Mas ele se deu bem e o professor perguntou se ele queria continuar fazendo teatro“Muito legalEle meu deu opçãoPela primeira vez podia escolher o que fazer.” A montagem do moleque que encontrava Jesus foi encenada em um encontro internacional da Congregação das Irmãs Doroteia“Estreei para o mundo.”

ESCONDIDO
O pai não queria que Nil estudasseE ele já participava até do grupo de jovens da Igreja Católica da comunidade“Ele insistia para que eu trabalhasseClaro, com mais dinheiro em casa sobraria para ele pagar a bebidaSe continuasse na escola seria expulso de casa.” Ele teve que estudar escondido, fingindo que trabalhavaTodos os dias, quando voltava das aulas, trocava de roupa na casa de um amigo vizinhoUsava roupa suja, como se tivesse acabado de sair de uma construção.

E assim seguiuPara encurtar a história, Nil viveu intensos 20 dias no 27º Festival de Inverno de Ouro PretoAinda era adolescenteAprendeu o máximo que pôde de artes cênicas“Voltei outro.” Procurou o grupo de jovens para botar em prática o que aprenderaMontou uma peça quefoi levada apenas ao Morro do PapagaioMontou uma companhia que, depois de duas ou três mudanças de nome, virou Grupo do BecoParticipação no projeto Arena da Cultura, da Prefeitura de BH, e oficinas com o Grupo Galpão elevaram os conhecimentos de Nil e seus colegas.

Para Nil César, que dirige cena com Maria do Carmo Fernandes Lino, teatro requer planejamento - Foto: Cristina Horta/EM/D.A Press

Teatro não é simplesmente a encenação de uma peçaRequer planejamento, busca de patrocínio, montagem, direçãoEm 2003, o Beco fez sete montagens“A gente queria o morro nos cadernos de cultura e não nas páginas policiaisE, felizmente, as portas do mundo cultural se abriram.” Mas o grupo precisava de uma sedeNão cabia mais no apertado quarto do barraco de Nil, onde ensaiavam“Havia uma academia de dança afro em um imóvel de 500 metros quadrados no pé do morro que fechou as portas.” Fizeram campanha para arrecadar fundos e pagaram o preço pedido, R$ 30 mil, em três parcelas.

DESAFIO
Mas havia outro desafio adianteO grupo foi mal recebido por uma gangue de traficantes que dominava a áreaParte da casa foi depredadaNil conversou, negociou, explicou que seu trabalho era para o bem da comunidade, e nada“Então, fizemos um espetáculo na rua com o pessoal do morro, e conseguimos convencê-los.” A Casa do Beco sobreviveu e vive de ações e parceriasHoje, 120 pessoas a frequentam.

As montagens percorrem outras cidades e a Casa do Beco virou referência e forma talentos, como Fernanda Carvalho, de 19 anosEla estuda ciências sociais na PUC Minas e tem uma peça montada, O morro do pássaro falante, texto de Nil César“Realizei um sonho, que era fazer teatroSem a casa, com certeza eu seria outra pessoaAqui me encontrei”, diz a jovemE abram caminho: lá vêm as Marias, a Cruzelina, a Maurina, a Geralda e tantas outras para se juntar a Fernanda em mais um ensaioPode ser até que encontrem na casa convite para um vídeo, um trabalho como figuranteMas o bom mesmo é estar ali, perto de casa, feliz, fazendo teatro, sem medo do mundo.