Jornal Estado de Minas

Pacientes mineiros que sofrem de doenças raras enfrentam longa jornada pela saúde



Eles não são poucos. O número de pacientes com doenças raras já chega a 15 milhões no Brasil. Mesmo assim, vivem à sombra de políticas públicas de saúde, o que os obriga a peregrinar por um diagnóstico preciso e tratamento. Batem em muitas portas, servem de cobaias para testar medicamentos, sofrem com a falta de tratamento multidisciplinar e convivem com o risco da morte. O dilema é descobrir por que o corpo muda, o intelecto fica comprometido ou as funções motoras se retraem. A maior parte das quase 8 mil doenças raras ainda não foi diagnosticada. Muitos doentes só sabem o que têm anos depois e, quando tratados, enfrentam o risco de ficar sem medicamentos, que podem custar até R$ 100 mil por mês para um única pessoa e são obtidos na rede pública somente por via judicial.



Nesta semana, um paciente com doença rara recebeu o apoio do papa Francisco. A cena chamou a atenção na Praça São Pedro, no Vaticano, quando num gesto de carinho o sumo pontífice abraçou um homem com neurofibromatose, que causa deformidades ósseas e tumores na pele e nos órgãos. Pelo aspecto das verrugas no corpo, quem tem a doença sofre não apenas com os sintomas, mas com o estigma social.

Pai de uma menina com neurofibromatose, o presidente da Associação Maria Vitória, Rogério Lima Barbosa, luta para garantir o controle da doença da filha, que dá nome à entidade, e para melhorar a atenção a pessoas com enfermidades raras. A criança de 6 anos tem a forma leve da doença, caracterizada por pequenas manchas na pele. Mas tem atraso no intelecto e dificuldades na escola, o que levou a família a investigar o problema e chegar ao diagnóstico quando ela tinha 3 anos. Rogério conta que a descoberta foi um choque. “O problema é que a doença liga um cronômetro na vida da pessoa. Não dá para fazer planos. É um eterno luto. É viver um dia depois do outro”, afirma.

A dificuldade de encontrar o diagnóstico para filha e a convivência com os obstáculos para tratamento fizeram o professor reduzir a jornada de trabalho para se dedicar à entidade. “O problema é que as doenças raras são muitas e são poucos os pacientes com cada doença. Somos um barquinho no meio do mar, sem ajuda dos órgãos de saúde”, diz Rogério. A família de Maria Vitória mora em Brasília (DF), mantém uma luta nacional e relações com associações em todo o país, inclusive de BH, onde poucos profissionais dão atenção a esse tipo de doente.



ATENÇÃO O desafio para lidar com doenças raras está justamente no pouco conhecimento da comunidade médica. Estudos apontam que 80% das doenças têm origem genética. Os médicos da área são apenas 15 em BH e cerca de 200 no Brasil. Responsável técnico do Ministério da Saúde no Hospital das Clínicas da UFMG, o geneticista Marcos Aguiar revela que o aspecto da raridade das doenças faz com que a maioria dos médicos nunca tenha recebido em consultório um paciente com doença rara.

A falta de diretrizes na assistência e a escassez de profissionais contribui para que os pacientes passem por vários especialistas para chegar a um diagnóstico preciso. “O resultado depende muito do esforço da família. Aquelas com situação financeira melhor conseguem mais rápido. Do contrário, dependem da vontade alheia”, diz. Ele se lembra de pessoas que passam anos tentando descobrir as causas dos problemas. “Algumas passam a vida inteira sem descobrir”, confirma.

Em uma das salas do Ambulatório São Vicente de Paulo, ligado ao Hospital das Clínicas, o olhar cansado da atendente Carmelinda dos Santos, de 60 anos, revela a luta para cuidar dos dois filhos mais velhos com uma doença rara. No caso de Rodrigo Santos, de 35, portador da síndrome do X-frágil, os sintomas foram percebidos quando tinha 1 ano, mas só aos 15 foi diagnosticada a doença. “Na creche, os professores me orientaram a procurar ajuda. Fui em vários médicos. Ficava em hospitais esperando o dia inteiro. Foi muita luta”, lembra a mãe. A filha, Renata dos Santos, de 30, também tem a doença, que se caracteriza por um atraso mental e mudanças físicas. Os dois irmãos fazem tratamento desde criança no HC, hoje com revisão anual.



(foto: Reprodução da Internet/Facebook)
O GESTO DE FRANCISCO O papa Francisco interrompeu, na quarta-feira, audiência geral na Praça São Pedro, no Vaticano, e emocionou 50 mil fiéis ao abraçar um paciente com neurofibromatose, doença genética que provoca tumores na pele e no sistema nervoso. O sumo pontífice orou em silêncio junto a ele por alguns minutos. As imagens do papa se dissemiraram na internet e muitos católicos compararam a cena com passagem da vida de São Francisco de Assis, que beijou um leproso em uma peregrinação. O atitude foi considerada demonstração de amor aos doentes. Durante a audiência, Francisco também pediu para os fiéis que orassem por Noemi, de 16 meses, que sofre de atrofia muscular.

Promessa de melhora em atendimento


Em fase de aprovação, uma portaria do Ministério da Saúde com diretrizes para o diagnóstico e tratamento é nova promessa para melhorar o atendimento aos pacientes com doenças raras. A medida prevê ampliação da assistência e incorporação de novos remédios. A medida é vista como alívio pelas famílias de doentes e profissionais de saúde, mas ainda precisa de um pacto entre União, estados e municípios.

Especializado no tratamento de pacientes com mucopolissacaridose (MPS) no Hospital João Paulo II, em BH, o pediatra e pneumologista José Simionato Filho defende uma política de assistência completa aos pacientes. “Eles precisam de tratamento multidisciplinar, com mais de uma dezena de profissionais, incluindo psicólogos para a família”, explica. Segundo ele, em casos sem medicação indicada, o tratamento é suportivo, com reabilitação. Mas mesmo com o uso de remédios, o tratamento deixa a desejar.



Outro desafio relatado pelo médico é a falta de psicólogos para lidar com a expectativa de vida proporcionada pela medicação a pacientes com MPS. “Antes, eles não passavam dos 12 ou 13 anos e hoje chegam aos 20 com desejos de sair, paquerar.” O médico espera que, com uma política nacional, os problemas, como a dificuldade de exames, sejam vencidos. “Além do desconhecimento sobre as doenças raras, nem todos os exames são feitos em BH. Alguns só em São Paulo ou no Rio Grande do Sul. Outros só fora do país”, diz.

DIFICULDADES Abrir caminho para o tratamento pode evitar sofrimentos como os do adolescente Victor Hugo Freitas de Paula, de 17, que tem mucopolissacaridose. Para ele, o desafio não acabou após passar pelo drama do diagnóstico da doença, causada por deficiência na produção de enzimas. Por desconhecimento dos sintomas, aos 7 anos ele teve hidrocefalia, uma complicação que o deixou cego. Hoje, não consegue escrever e tem dificuldade de caminhar. O adolescente faz o controle da doença com remédios e tratamentos de reabilitação respiratória e motora, mas já passou por situações complicadas. “Foi difícil até identificar a doença, muitos sintomas foram confundidos com infecções e ele fez várias cirurgias”, lembra a mãe, a professora Dulcineia Freitas Pereira de Paula, de 40. A angústia para conseguir remédios também é um tormento. Ações na Justiça nem sempre dão garantia de continuidade. A família de Victor Hugo vive um drama, pois só tem remédio até dezembro. O governo ainda não liberou nova compra.

Para conseguir o tratamento para a esclerose múltipla, a aposentada Arilma Alevato Sabino Alves, de 48, precisou ir à Justiça. Ela tem esclerose múltipla e entrou com mandado de segurança, mas ainda não conseguiu o remédio.



Segundo a referência técnica em doenças complexas da Secretaria de Estado da Saúde, Ana Carolina de Araújo Leite, a dificuldade em criar fluxos de atendimento e assistência aos pacientes está na falta de uma política nacional.

Encontrar corpo clínico preparado para lidar com a doença é ainda mais raro. Hoje, apenas alguns profissionais se especializaram em algum tipo de enfermidade.

Um diagnóstico difícil e demorado

Doença rara é definida pela Organização Mundial de Saúde como a que afeta até 65 pessoas em cada 100 mil, ou sja, 1,3 pessoa para cada 2 mil. Elas são caracterizadas pela ampla diversidade de sintomas e variam de uma para outra e de pessoa. Manifestações frequentes podem simular doenças comuns, dificultando o diagnóstico, causando elevado sofrimento clínico e psicossocial aos afetados e suas famílias. As doenças raras são geralmente crônicas, progressivas, degenerativas e até incapacitantes, afetando a qualidade de vida.

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