Jornal Estado de Minas

Abrigos para moradores de rua de BH estão lotados

Unidades de atendimento especializado a moradores de rua na capital estão com as 680 vagas ocupadas. Prefeitura promete inaugurar três espaços até o fim do ano

Sandra Kiefer
Moradores de rua no albergue Tia Branca, no Floresta: quem tem carteirinha entra; que não tem, corre risco de ficar de fora - Foto: Gladyston Rodrigues/Em/D.A Press


 

A multiplicação de moradores de rua em Belo Horizonte deixou unidades de atendimento especializado do município com lotação esgotadaOs dois abrigos, duas repúblicas e um albergue para a população com trajetória de rua estão com as 680 vagas ocupadasA falta de espaço pode ser obstáculo para os planos da prefeitura de agir com maior rigor diante da ocupação de áreas públicas – na semana passada, o prefeito Marcio Lacerda anunciou que pretende orientar a fiscalização a retirar objetos como colchões e eletrodomésticos de moradores de ruaPara abrigar toda a população de rua da cidade, seria necessário praticamente dobrar a capacidade dos abrigos, considerando as 1.164 pessoas identificadas no último Censo da População de Rua, de 2005O levantamento, porém, já está defasado: pelos cálculos da Pastoral de Rua, o contingente já passa de 2 mil

Tanto o Abrigo São Paulo como o Albergue Tia Branca, as maiores unidades especializadas no atendimento dessa população, com 400 e 150 vagas, respectivamente, estão lotadosSomente em setembro, 140 pessoas foram barradas na entrada do Serviço de Acolhimento Institucional para a População de Rua e Migrante, mais conhecido pelo antigo nome de Albergue Noturno Tia Branca, localizado na Rua Conselheiro Rocha, no Bairro Floresta“Há uma demanda cada vez mais crescente por atendimento institucional na cidade”, reconhece a pedagoga Soraya Romina, coordenadora do Comitê de Acompanhamento de Políticas para a População de Rua“Estamos atentos a isso”, acrescenta.

Para tentar reduzir o déficit de vagas, a prefeitura vai abrir até o fim do ano pelo menos três espaços voltados para acolher em caráter provisório os moradores de ruaA primeira nova unidade começa a funcionar hoje e prestará atendimento a pessoas que acabam de receber alta hospitalarCerca de 20 pacientes em situação de rua que estiverem doentes serão levados para a Rua Além Paraíba, no Bairro da Lagoinha

Outras 80 vagas serão abertas no Tia Branca até 26 de outubro, com a transferência de migrantes para a chamada Pousadinha, na Rua Espírito SantoUma nova república criará 44 vagas para a população em situação de rua na Avenida Nossa Senhora de Fátima, no Bairro Carlos Prates

Enquanto as três novas unidades não começam a funcionar, os abrigos atuais enfrentam dificuldades para convencer moradores de rua a aceitar regras de convivência“Minha caixa, minha vida” é a inscrição da atual moradia de José*, de 63 anos, improvisada com restos de caixa de papelão exatamente em frente ao Albergue Tia BrancaAo lado, há um fogareiro próprio para esquentar comida e um banco velho, de pernas bambas como as do dono, que passou o dia bebendoÀ noite, a partir das 18h, o aposentado José entra na fila para dormir dentro do albergue, que oferece cama limpa, comida, banho e roupa lavada, sem custosCom capacidade para 320 moradores de rua e 80 migrantes, o Tia Branca foi obrigado a instituir um sistema de credenciamento, como forma de regular o fluxo de pessoas, que cresce a cada diaQuem tem carteirinha entra fácilQuem não tem corre o risco de ficar de fora

“Sou filho deste albergue e tenho prioridade, porque estou aqui há oito anos
Mas você já viu a quantidade de pessoas do interior que andam aparecendo na capital?”, compara JoséDe fato, o último censo da população de rua de BH mostrou que 40% dos entrevistados eram de fora de Belo HorizonteEntre 10 e 15 homens moram diante do albergueNegam-se a passar pela triagem do Tia Branca, que exige o cumprimento de regras mínimas de convivência, como horários, higiene pessoal e silêncioPreferem ficar do lado de fora, falando mal dos serviços oferecidosQuestionam haver suspensões pelo uso de álcool ou drogas, brigas, promiscuidade e furtosCasos de violência contra o colega, reincidência no porte de drogas ou usar arma podem levar à suspensão definitiva

“Não vou com a cara de nenhum dos quatro seguranças daquiQuando dá nove horas da noite, eles apagam a luz e mandam todo mundo calar a boca”, reclama um deles, revoltado por ter sido suspensoO sistema parece funcionar, pois a média é de um segurança a cada 100 homens, sendo que, mês passado, não houve registro de uma única ocorrência policial

“Quer saber a verdade mesmo? Os caras preferem ficar do lado de fora porque, quando cai a noite, começam a passar pessoas de bem distribuindo sopão, marmita, pão e leiteDentro do albergue, é uma refeição só”, compara o marceneiro Vítor*, de 34 anos, que também aguarda na fila até dar a hora de entrarEle pede para não ser identificado, sob risco de ser impedido de frequentar o estabelecimentoPercebe como problemas do lugar a dificuldade extra para arranjar emprego ao fornecer o endereço do albergue na ficha do cadastro“Fora os percevejos, não tenho nada do que reclamar”, completa

 

Problemas

É geral a reclamação contra a infestação de percevejos ou muquiranasA direção do albergue reconhece o problemaTrocou até os estrados das camas, na tentativa de identificar a origem do surtoEm vãoA cada imigrante infectado, voltam os percevejosNa sexta-feira, os dormitórios passaram por um processo de fumacê, sob orientação da Zoonoses, na tentativa de combater a pragaCerca de 70% dos homens recusam-se a tomar banho, que não é obrigatório“Já tentamos colocar funcionário na porta vigiandoA pessoa fingia estar debaixo do chuveiro, mas saía com a toalha secaQuando era feita a observação a respeito, o sujeito molhava a toalha na pia e entregavaSó serviu para aumentar os custos com lavanderia”, revela Gladston da Silva Lage, gerente de apoio comunitário e coordenador do albergue, ligado à Associação Grupo Espírita O Consolador

Apesar dos problemas, Gladston Lage compara o albergue a um “hotel cinco estrelas”, com a mudança das instalações para o Bairro da FlorestaAté 2010, funcionava nas proximidades da Pedreira Prado Lopes, em galpões improvisadosO gasto é de R$ 40 diários per capita, que inclui o pagamento de 70 funcionários, serviço terceirizado de lavanderia, água, luz e encaminhamento para 14 convênios para vagas de empregoEle ressalta que o albergue tem a função de oferecer proteção social de caráter transitório“As pessoas têm de entender que não podem morar aquiÉ preciso respeitar o prazo de cada um, mas encaminhá-los de volta para sua cidade, reinserir na família ou nas bolsas-moradia”, diz ele, lembrando que o lugar conta com regras rígidas para lembrar que a vida em sociedade é trabalhosa


* nomes fictícios

Censo começa este mês

Mendigo em frente a albergue: muitos preferem ficar do lado fora para não se submeter a regras rígidas de convivência - Foto: Túlio Santos/EM/D.A Press Por distribuir 13 mil refeições ao ano nos restaurantes populares, de forma gratuita aos moradores de rua credenciados, BH tornou-se pólo de atração da população fronteiriçaO termo é usado para definir não apenas moradores de outras cidades, como também pessoas que sobrevivem no limiar das regras da sociedadeNo último censo, 40% dos entrevistados era de migrantes“Nossa maior ansiedade é pela realização do novo censo da população de rua, que será feito este mês e vai apontar quantas são as pessoas na rua e de onde vêm”, diz Soraya Romina, do Comitê de Acompanhamento de Políticas para a População de Rua“É preciso entender melhor o fenômeno, até para abrir o debate com o governo do estadoBH é a única cidade que garante a segurança alimentar e nutricional da população prevista na Constituição”, acrescentaEla disse que estão em estudo modelos de prédios de apartamentos com habitações de uso social“Na verdade, não só o abrigo é a solução para a população de ruaCada pessoa traz sua história específica e vai construir seu caminho de saída”, completa