Jornal Estado de Minas

Sagrado e profano convivem no centro de Belo Horizonte

Orações, brigas, sexo, silêncio, jogos, tradição, imigrantes. Mais de 1 milhão de pessoas dão vida ao Centro de Belo Horizonte todos os dias

Jorge Macedo - especial para o EM

Museu de Artes e Ofícios deixa a Praça da Estação mais bela - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

A imersão continuaO cair da tarde traz uma enxurrada de automóveis à Avenida dos AndradasPelas calçadas, um povo apressado corre depois do almoçoMoradores de rua e catador de papel fazem a sesta sob o Viaduto Santa TerezaNa Rua Carijós, escada acima, sete sujeitos entre 40 e 70 anos, ocupam o salão de bilharAli, sinuca é assunto de profissionalO especialista em manutenção das mesas, conhecido como Dudu, cita caso de desafio que teve notícia“A aposta durou quatro dias entre os dois bambasO perdedor ficou devendo R$ 85 milNão tinha dinheiro, então, perdeu um apartamento no Bairro Castelo”, conta

Ainda é hora de almoço no Café Palhares, na Rua Tupinambás
Ponto histórico, aberto em 1938É onde, por R$ 12,90, come-se o kaol, prato feito mais famoso de Belo HorizonteLoja pequena, com 22 bancosComida de primeira e atendimento sem igual, que justificam a fila na calçada e o trâmite para patrimônio imaterial da receitaO senhor do caixa distribui simpatia à clientela, enquanto atendentes e a cozinheira não deixam ninguém com fomeAna, então, de Curitiba, encantadora que só ela, é destaque no balcão.


Na Rua dos Caetés, o prédio do Sesc, o Centro Cultural JK, reluz em contraste com tudo o que é degradação no perímetroNa Rua Rio de Janeiro, os damistas passam o tempo levado a sério sob a marquise do belo Edifício Bemge – antigo Banco Mineiro da Produção –, projetado por Niemeyer, nos idos de 1950O índio Taruande, de 23, da aldeia pataxó Coroa Vermelha, no extremo sul da Bahia, vende o artesanato feito pela famíliaBreak, a estátua viva faz graça pelos trocados no chapéuO evangélico prega; a pipoqueira sorri simpatia; a mocinha flerta o guarda e o palhaço sopra bolas de sabão.

Prazer fugaz

Segundo a Polícia Militar, são cerca de 1 milhão de pessoas, por dia, no Hipercentro

Um quarteirão acima da Praça Sete, a Capela Nossa Senhora do Rosário é um mimoÉ a igreja mais antiga de Belo Horizonte, datada de 1897No pequeno jardim de entrada, a flor-de-lis na parede faz ainda mais bonito o canteiro de ixóriasNo velário, a moça em silêncio de oração parece pedir graça pelo fim das lágrimas que ela não dá conta de esconderNas escadas, o casal não se entende e o “Cala a boca!” do homem rompe o silêncio das preces.


Os pontos de ônibus lotados, transferidos da Avenida Santos Dumont para a Rua Guaicurus, não espantaram os fregueses dos hotéis de prostituiçãoEm becos e corredores, as portas fechadas e toalhinhas com nomes bordados guardam indecênciasAo trato de R$ 20, R$ 25 ou R$ 30, o prazer fugazVê-se de tudo entre os frequentadores do lugar: meninos que dizem ter 18 anos; jovens vestidos com roupas “de marca”, grosseiramente falsificadas; homens de gravata; sujeitos fedidos; sapatos caros e velhos de bengalaNa vizinhança, tem também cabines com filmes pornô e striptease ao vivo.
É grande a mudança de clima, atmosfera e intenções de um quarteirão para o outroNa Rua da Bahia, pouco acima da Praça Rui Barbosa, baile beneficente atrai os mais velhosOs casais da melhor da idade tomam conta do salão ao som de Lei Gomes e HélioÉ o Bailinho da Tia Naná, sucesso há 33 anos em Belo HorizonteHá três semanas no endereço, o encontro promovido por Maria Godoy Marcondes, a Tia Naná, de 86, já é assunto na regiãoAlegria para Maria Regina, de 60, uma das organizadoras e filha de Tia Naná, devota de Nossa Senhora Aparecida.


No salão vermelho e branco, homens e mulheres elegantes roubam os holofotes junto à banda de dois homensO clima é de amizade e namoro embalados pelo melhor do bolero, do arrocha e do forró pé de serraNas mesas, muita água mineral, refrigerante e duas garrafas de cervejaVestidos florais deixam à mostra os joelhos da dançarina mais serelepeFora o bailinho das quintas-feiras, Tia Naná promove também excursões a cada dois mesesA próxima, em 10 de novembro, é o “passeio na roça”, em Rio Acima, na fazenda Engenho D’água

Gatos, ratos e borboletas


São muitos os programas de calçada para quem quer esticar a quinta-feiraNão muito longe dos mais velhos, a moçada gosta mesmo é de paquerarEm ponto de encontro na porta do Shopping Cidade a mocinha espera compromissoPelo celular, charmosa, dá a pista: “Tô de camisa vermelha…”Pouco abaixo, próximo aos hippies com seus cigarrinhos suspeitos, Trio Harmony Vox arrebata a plateia nas mesas sob o céu estreladoAfinadíssimos, os rapazes dão show com o melhor da disco music dos anos 1970 e 1980 e embalam os enamorados que se chamegam, como os gatos do Parque Municipal.


Já no Café Bahia, a moça tatuada, solitária, é quem chama mais a atençãoLinda, não passa despercebida pelos rapazes de bom gosto no espeto dos petiscosO ponto é antigo, tradição na Região CentralDesde 1937Ali, garçom é o “passarinho” Edson Roberto Pio, de 56, que assovia que nem ave cantadeiraO moço “bico doce”, destaque há 25 anos no estabelecimento, repete no beiço com perfeição os sopros de bem-te-vi, canário-belga, curió, sabiá, trinca-ferro, canário-da-terra, pintinho e gavião.


De volta à Avenida Olegário Maciel no azul escuro da horaComércio fechado, pouca gente na via, é o terceiro piso do Mercado Novo a sensação do traçadoProposta autoral de peça de teatro divide o espaço alternativo do Mercado das Borboletas com o charme do grupo de maracatu Baque de MinaO lugar é uma incubadora, celeiro de bons artistasCom o avanço da noite, a Kombi feita lanchonete nas cores do reggae é ponto de passagem para arte erótica que esquenta o início da madrugadaNo que segue, no rasteiro do mais abaixo do Hipercentro, são dos ratos muitos dos segredos da escuridão (JFC)