Jornal Estado de Minas

Nossa História

Conheça a polêmica da matriz de Ferros

Após decidirem derrubada de matriz barroca e construção de uma nova, católicos de Ferros abrem debate internacional sobre nudez em painel, só encerrado com decisão do Vaticano

Humberto Siqueira
Painel da artista plástica Yara Tupinambá mostra história da religião, com a nudez de Adão e Eva - Foto: Arquivo/Paroquia de Ferros/Divulgacao
A aconchegante cidade de Ferros, incrustada na Serra do Espinhaço e cortada pelo Rio Santo Antônio, na Região Central de Minas, reza sim pelo frei franciscano, mas tem Sant’Ana como sua padroeiraCom parte do dinheiro oriundo da mineiração de ouro e diamantes, os fiéis ergueram no século 18 uma matriz barroca em homenagem a ela


A igreja serviu bem aos fiéis até 1959, quando o padre José Casimiro da Silva assumiu o cargo de vigário da paróquiaRaymundo Nery Pinto Ferreira, o srMundinho, lúcido aos 102 anos, atuou como tesoureiro da Igreja do Rosário de 1935 a 1952 e acompanhou de perto a construção da nova igrejaEle lembra que, ao assumir, o vigário ficou alarmado com o estado de conservação da edificação“Ele logo constatou que seria preciso uma reforma ampla e urgenteA estrutura, construída quase exclusivamente com madeira, estava bastante prejudicada pelo ataque de cupinsE também já estava sendo considerada pequena para os eventos religiososEntão, o padre propôs a demolição a demolição da igreja e construção de uma mais moderna, de linhas avançadas e maior.”

A proposta foi encaminhada de imediato a dom Oscar de Oliveira, arcebispo de Mariana, à qual a paróquia de Sant'Ana pertencia à épocaO prelado sugeriu ao vigário que consultasse os paroquianos por meio de um plebiscito

Durante alguns meses, a população foi informada pela rádio, jornais e nas celebrações religiosas

Em 1961, o plebiscito foi realizadoVenceram aqueles a favor da construção da nova igrejaForam 3.550 votos a favor e 68 contraO projeto do novo templo foi entregue ao arquiteto Mardônio dos Santos Guimarães, responsável pelo projeto da rodoviária de Belo HorizonteA construção teve inicio em 1962.

Raymundo lembra que a boca de urna informal, nas conversas das praças e bares, indicavam uma vitória do sim, mas ainda assim estava no ar um clima de expectativa e especulação pelo resultado“As pessoas não sentiram que estariam colocando no chão um patrimônio históricoO que se tinha era uma sensação de avanço rumo à modernidadeNaquele tempo, as pessoas não tinham essa noção de preservação, como existe hojeSe fosse hoje, com certeza, a igreja antiga não seria demolida
Apenas aquela minoria que votou contra demonstrou indignaçãoEu mesmo fui a favor da construção da nova igreja pelo fato de a antiga estar em mau estado, além de ser pequena para acomodar a população da cidade”, explica

MURAL A campanha foi feita fazendo uso das cores verde e vermelhaO voto verde seria pela construção da nova igrejaDo outro lado, os propugnadores do voto vermelho defendiam a preservação da antiga igreja barrocaCom a vitória do voto verde, surgiu um projeto arquitetônico que buscava alinhamento com as novidades da então modernidade da Igrejinha da Pampulha, em Belo HorizontePara tanto, a artista plástica Yara Tupinambá foi convidada a pintar um mural decorativo para o altar da nova igreja, o que deu origem a uma nova rodada de debates e burburinho com repercussão internacional na cidade

Quando recebeu a encomenda do trabalho, Yara conta que refletiu bastante sobre o que poderia fazerOptou por retratar a criação do mundo“Fiz a história da religião católicaComeça com a criação do mundo e a separação de água e terraEm seguida, a criação de Adão e EvaDaí, vem o pecado do homem e sua expulsão da naturezaNa quarta cena, temos a anunciação, quando um anjo revela a Maria que ela conceberá o filho de DeusA imagem seguinte é Jesus carregando a cruzAs duas últimas imagens retratam Pentecostes, com a descida do Espírito Santo sobre os apóstolos de Jesus Cristo e, por fim, após sua morte, uma imagem de santos da igreja saindo de seus ombrosO fiel que conhece o Evangelho vai identificar tudo isso na imagem”, diz a artista.

BÊNÇÂO
A obra de arte demandou um ano de trabalho de Yara, que contou com a assistência dos alunos Silvia Gaia e Anadali PitaO painel, batizado de A árvore da vida, trazia Adão nu e Eva seminuaQuando a obra foi instalada, a artista participou de uma missa solene e logo teve início a polêmica“Roberto Drummond fez uma matéria onde comentou sobre o nu na pinturaO caso acabou virando uma polêmica, com repercussão nacional e internacionalComo tivemos opiniões diferenciadas na cidade, houve uma convocação dos bispos e, durante dois anos, vários deles vieram a Minas ver a obraComo não conseguiram chegar a um consenso, o caso seguiu para o Vaticano, que analisou e considerou a pintura boa, em acordo com a igreja”, lembra.

Para ela, o nu faz parte da arte há anos e não é ofensivo“O Vaticano tem a maior coleção de arte romana do mundo, onde há vários personagens nusMas o que as pessoas precisam entender é que o nu não é pornográficoE Adão e Eva, assim como os índios, andavam nusMas esse caso repercutiu bastanteE depois ainda foi parar nas páginas do livro Hilda Furacão, no qual Roberto Drummond escreveu sobre as tias que entravam na igreja de costas para não ver o Adão nu”, recorda.

 

 

Artista revê obra e sugere restauração

Em fevereiro, artista plástica Yara Tupinambá esteve na matriz e pôde avaliar o estado de conservação de sua obra“O painel está precisando de uma pequena manutençãoNada dispendiosoMas a parte de baixo foi um pouco danificada pela água usada na faxina, ao lavar o chãoComo a pintura está na altura da mesa de celebração, a água prejudicou apenas painéis em brancoNa parte de cima, por conta de um vazamento no teto, também é preciso um trabalho de restauração simplesFora isso, o cuidado é passar, de tempos em tempos, um pano seco de leve para tirar a poeira”, aconselha a artista, que quando pintou as telas optou por cores planas e ângulo bidimensional.

A avaliação já faz parte de um plano para restaurar os pequenos danos causados pelo tempoÀ época, ela enfatizou que o acervo do templo é muito precioso e precisa ser preservadoLembrou ainda que os vitrais alemães, em vidros lisos e coloridos, criados por Mario Silésio, são peças raras, difíceis de serem encontradas

Durante sua passagem, Yara limpou algumas peças do painel a fim de testar a viabilidade da restauraçãoE saiu satisfeita com o diagnóstico, certa de que a missão é possívelEla chamou também a atenção sobre os desgastes da escultura da padroeira Sant’AnaYara sugeriu a instalação de uma plataforma na base da obra feita em metalon com pingos de solda derretida, em estilo surrealista e moldada por Wilde Lacerda, para evitar o acúmulo de poças de água no local(HS)