Jornal Estado de Minas

Homens revelam o desafio de ser pai e mãe

Trajetórias de homens que perderam as esposas e se viram diante da missão de educar filhos pequenos mostram a força e a superação de quem não teve tempo de se abalar com a dor

Flávia Ayer

Viúvo aos 38 anos, Zenon não se intimidou com a criação de três meninas e um menino - Foto: MARIA TEREZA CORREIA/EM/D.A PRESS


 

“Pãe” de quatro filhos
 
A tranquilidade com que Zenon Barbosa dos Santos, de 61 anos, fala da criação dos filhos dá até a impressão de que cuidar sozinho de quatro crianças seja algo comumMas, para o sorveteiro, ele não cumpriu mais do que sua obrigação de pai: dar banho, passar, lavar, costurar, cozinhar, ajudar nas tarefas da escola, ensinar a fé cristã e até preparar o bolo nos aniversáriosAos 38 anos e desempregado, Zenon perdeu a mulher, Rosaura, depois de 22 anos de convivênciaViúvo e sem trabalho, restou a ele a única alternativa de seguir em frente e educar os filhos, então com 10, 9, 7 e 4 anos.

“Fiquei abalado com a perda, depois de tantos anos, mas viver com criança te envolve muito”, conta seu ZenonO primeiro passo para pôr a vida nos eixos foi ter uma atividade perto de casa, no Bairro Horto, Leste de BHPrimeiro, veio o armarinho, construído na frente do lote, substituído pela sorveteria, sucesso na região há mais de 20 anosOs filhos cresceram trabalhando com o pai e até hoje, a nutricionista Luciana, de 32, e a estudante de direito Vânia, de 27, ajudam no negócio.

Avô de dois netos, com a turma toda criada e com curso superior, ele hoje ri e se emociona com as lembrançasQuando as filhas mais velhas, Luciana e a contadora Eliane, de 30, tiveram a primeira menstruação, seu Zenon, homem de fino trato apesar do pouco estudo, homenageou as meninas com floresA caçula, Vânia, então com 5 anos, protestou: “Que negócio é esse que você ganha flor?”.

O primogênito, Eduardo, de 33, bacharel em direito ingressou no serviço militar“Realizei esse sonho na figura do meu filhoSentia o maior orgulho em lavar e passar a farda dele

Uma vez, Eduardo perdeu um calção do uniforme e eu costurei um igual para ele não correr o risco de ser preso”, contaMas nem tudo foram flores“Tinha o carinho, mas também as palmadas”, diz.

O olhar e o sorriso das filhas mostram que tudo valeu a pena“É um verdadeiro ‘pãe’: pai e mãeTudo o que sei na vida – até o serviço de casa – foi ele quem me ensinouPoucas são as pessoas que tem a sensibilidade dele”, conta LucianaVânia também não poupa elogios: “Ele é o nosso companheiro, partilhou tudo com a gente na ausência da mãe”O pai se derrete como o sorvete que vende: “Meus filhos são a razão da minha vida!”.

 

Nova vida aos 70 anos

O arquiteto Kleber Gonçalvez e a filha Anna Luiza: "Temos um vínculo muito forte" - Foto: beto magalhães/EM/D.A PRESS Poucos são capazes de vencer as próprias inseguranças para se reinventar aos 60 anos, quando a vida clama por estabilidadeKleber Pereira Gonçalves está nesse grupo de corajososEstéril desde os 26 anos, o arquiteto relutou por três décadas em adotar uma criança

“Tinha medo de ser pai”, contaTransformado pelos ensinamentos da logosofia, mudou de ideia e, depois de quatro anos, chegou Anna LuizaEle tinha 61 anos e a mulher, Nazaré, 55Há nove meses, nova reviravoltaNazaré morreu vítima de um câncerO papai Kleber se viu então diante da responsabilidade, aos 70 anos, de assumir também o papel de mãe.

Amadurecido pela vida, ele prefere tocar o barco a lamentar, já que as atribuições não dão tempo para choro“O que não nos mata nos fortalece”, diz, citando o filósofo alemão Friedrich NietzscheA primeira preocupação do arquiteto foi demonstrar para a filha os papéis de cada um na relação“Logo que fiquei viúvo, deixei claro que eu cuidava dela, e não ela cuidava de mimE tenho administrado isso bem”, ressalta.

Kleber brinca, ajuda a fazer tarefas escolares, põe a filha para dormir, vai às reuniões do colégio, faz curativo quando ela se machuca..“Tenho a colaboração de uma ajudante do lar e as tias são presentes, mas faço tudo que um pai e uma mãe fariam”, explica“Pode ser que, quando ela se tornar uma adolescente, sinta uma dificuldade maior, pois é um universo completamente diferente daquele que vivi, de muita repressão”, reconhece.

Enquanto essa fase não chega, Anna e o pai tratam de fortalecer o sentimento nascido no dia em que aquele bebê de 2 meses chegou, em 2004“Logo tive a impressão de que a Anna Luiza era uma pessoa que estava reservada para a genteTemos uma relação muito estreita, um vínculo forte que se percebe no olhar, no companheirismoNos beijamos, nos abraçamos, coisa que não se costumava fazer na minha infância”, conta.

Tanta afinidade faz o arquiteto ter certeza de que aquela insegurança em ser pai era “um medo infundado”O desafio agora é conduzir a criação e a educação de Anna Luiza“Tento mostrar a ela a importância de ser independente, o caráter e as virtudes da paciência, tolerância e dar a ela valores mais humanísticos do que qualquer outra coisa”, resume, ao descrever sua missão.