A venda de ingressos para espetáculos e jogos de futebol no câmbio negro, por meio dos chamados cambistas, ocorre sob uma camuflagem de “serviço” para dar comodidade aos clientes, mas a expansão e a sofisticação dessa atividade chegaram a tal ponto que envolve até falsificação de documentos, corrupção de funcionários, furto de bilhetes e formação de quadrilhaA reportagem do Estado de Minas percorreu portas de estádios, casas de shows e ginásios para mostrar como funciona o esquema de grupos que vivem de desviar entradas das bilheterias e recrutar gente para pernoitar em filas e comprar tíquetes e que, segundo cálculos da Polícia Militar, chegam a reter até 5% dos ingressos mais desejados de Belo HorizonteOu seja, de cada 20 entradas emitidas pelas organizações de jogos e espetáculos, uma vai parar nas mãos dos cambistas – às vezes antes das vendas oficiais – e sairá muito mais cara para o consumidor.
Os métodos dos atravessadores evoluíram e não são mais apenas uma combinação de pôr muita gente numa fila para comprar mais ingressos do que o permitido e depois revendê-los“Meu esquema é o de colocar gente na fila, mas conheço quem consiga até 200 ingressos de dentro da bilheteriaSai tudo junto, no bloco, antes de começar a venda oficial”, revela um cambista que atua em BH há cinco anos“O cara é tão forte e tem tantos clientes que já aconteceu de ele comprar os meus ingressos quando já tinha vendido todas as entradas dele”, completa.
A audácia dos cambistas desafia a políciaNa última quarta-feira, por exemplo, a reportagem foi abordada por dois cambistas que vendiam ingressos do jogo Brasil e Chile, no Mineirão, dentro da área que seria restrita a quem já tivesse entradas em mãosO ponto que escolheram é logo embaixo da esplanada que liga o Mineirão ao Mineirinho, um local escuro, onde a polícia não conseguia vê-los“Ingresso, ingresso, ingresso”, gritavam para atrair fregueses“Quantos você quer? Vendo por R$ 180”, disse o homemCom a recusa, fez uma última oferta: “Faço por R$ 100 e ainda te levo na bilheteria para você ver que não é falso”, acrescentou
Outro exemplo de como os grupos de cambistas são cada vez mais sofisticados e semelhantes aos de organizações criminosas foi revelado com a prisão de um dos mais conhecidos negociadores de ingressos de Minas, Julio César dos Santos, apelidado de “Negro Gato”, de 31 anosEle foi detido no dia 21 nos arredores do Mineirão, durante o jogo Atlético e Villa NovaSegundo a polícia, o esquema de Negro Gato era articulado e envolvia cerca de 30 pessoas que trabalhavam exclusivamente para revender ingressos mais carosFoi a 72ª vez que a polícia prendeu o cambista, que tinha como lema não vender ingressos, mas “comodidade”, aliviando seus clientes de filas de bilheteriasDe acordo com o tenente André Oliveira, do 34º Batalhão da Polícia Militar, os próprios policiais ficaram surpresos com a complexidade das ações do cambista ao entrar na sua casa, que fica no Bairro Luxemburgo, na Região Centro-Sul de BH.
Na casa de Negro Gato havia maços de formulários de frequência escolar, carimbos de certificação de escolaridade, máquinas para plastificar documentos, blocos para atestados médicos e dezenas de ingressos de eventos passados e futuros, além de mais de 200 nomes de clientes“Com esses formulários, o suspeito forjava carteiras de estudantes para seus funcionários comprarem ingressos mais baratos ou fingir que comprariam para menores que não estavam no local”, conta o militar“Com os atestados médicos, podiam, ainda, entrar na fila prioritária e até faltar ao serviço para madrugar nas filas”, afirma.
Carro de luxo
Tanta sofisticação rendeu a Negro Gato destaque entre os cambistasDe acordo com a PM, o atravessador e sua mulher montaram uma empresa de marketingPor meio da firma, conseguiram até o aluguel de uma máquina de cartão de crédito que usavam para receber pagamentos
Outros 300 ingressos escondidos debaixo do estepe do veículo chamaram a atenção por dois motivosPrimeiro por estarem todos ainda presos ao bloco e sem destaque, o que pode indicar que o cambista conseguiu as entradas dentro da bilheteriaAlém disso, os ingressos eram para um jogo do Botafogo contra o Atlético, em 2012, no Rio de Janeiro, o que mostra que o cambista tem se aventurado em outros estados“Só que como não vendeu nada, achamos que a máfia de lá (do Rio) pôs ele para correr”, diz o tenente André OliveiraOutras nove pessoas foram detidas naquele dia, todos suspeitos de trabalhar para Negro GatoDiante de tanto material, o cambista, em vez de ser punido com serviços comunitários, foi levado para o Ceresp da Gameleira e responderá por formação de quadrilha e falsificação de documentos públicos.
Tudo por uma entrada
» Diferentes táticas usadas por grupos de cambista
Recrutamento
São os mais comunsContratam pessoas para ficar nas filas das bilheteriasDepois, vendem mais caro os ingressos.
Desvio
São pessoas ligadas a algum nível da organização dos eventos e que desviam ingressos das bilheterias e municiam cambistas.
Reutilização
Têm acesso a ingressos usados por frequentadores que já entraram no evento e que são repassados a cambistas para nova utilização.
Fontes: Polícia Militar, Polícia Civil, cambistas
Veja matéria sobre a prisão do cambista Negro-Gato, no Mineirão: