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Estado de Minas

Um mergulho no cotidiano da Praça da Liberdade

EM conta histórias de quem faz o dia a dia de um símbolo de Belo Horizonte


postado em 07/04/2013 07:00 / atualizado em 07/04/2013 08:01

Cena do cotidiano: senhores de idade conversam na Praça da Liberdade(foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)
Cena do cotidiano: senhores de idade conversam na Praça da Liberdade (foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press)

Respeitável, pública, a praça. Cenário natural, de liberdade, em grande arena a céu aberto. Nobre, vivo, palco para personagens de alta estirpe ou de pouca sorte no mundo dos três turnos – ali, ricos e pobres são vizinhos. Alma boa e suor de pequenos e gigantes aos pés do urdimento das palmeiras-imperiais. Folhas riscam a ribalta e rasteiras são as flores. Entre as paredes invisíveis, coxias históricas que formam o maior complexo de cultura do país. Em espetáculo permanente, sob a bambolina das estações, cruzam-se as tramas do instante que não se repete. O efêmero sob a luz mutante dos astros refletores – como os ventos. Em pauta, dia e noite de histórias na Praça da Liberdade.

Rosângela, de 43 anos, e Luiz Célio, de 42, são catadores de latinhas. Já perderam as contas da vida nas ruas. Na Região Centro-Sul, há pouco mais de ano. Madrugam para encher dois carrinhos de supermercado com restos. Pelo quilo dos achados o casal recebe R$ 2,40. São precisos os dois caixotes sobre rodas abarrotados para a renda de R$ 15 por dia – para os dois. No bebedouro, água limpa para refrescar a nuca e matar a sede. “Andamos muito, moço. Das 6h às 23h. Afina as pernas, mas a barriga não acaba não”, diverte-se a mulher. Quebram a esquina na companhia do cão Duke para garantir o pão do dia.

Outros três nômades, na fila para o bebedouro, sacam suas sacolas baratas. Dentro delas, escovas de dentes e creme dental. Um deles, o mais alto, tem até um estojo infantil Hot wheels, onde guarda kit higiene. Manda ver o fio dental no sorrisão. Cheio de bom humor, Luiz, de 32, 33 ou 34, “sei lá”, diz que é pobre mas é feliz. Conta que gosta de variar. “Aqui, durmo só de vez em quando. Não posso dar mole, né não?”, sorri. Os outros dois estão juntos. Molham a cabeça e jogam água debaixo dos braços. “Vou indo”, despede-se Luiz. Para onde? “Ainda não sei. Vou ali”, aponta para a Avenida Bias Fortes.

A metros do bebedouro, a pista vai sendo ocupada pelos “atletas”. Gordos, sarados e magrelos. Todos bem dispostos. Particularmente animada é a turma com mais de 60. Grupos de dois e de três, lado a lado, tomados de assunto. Às 6h, chegam a impressionar pelo bom humor e pela satisfação. Como impressiona também a paixão do casal elegante, de roupas sociais, no banco, próximo ao pé de manacá. Na casa dos 30 anos, feito canarinhos, beijam-se e carinham-se das 6h01 às 7h20. Tamanho fôlego arranca comentário entre dois velhos: “Ah, meu tempo!”, brincou o bigodudo de boné da Ferrari.

Na manhã, o espetáculo e conjunto da obra na arena Liberdade é físico e biomecânico. Cada ator em exercício no seu raio e sistema de alcance. Uma variedade incrível na marcha em solo e no vaivém dos braços. Homens e mulheres, jovens e velhos. Nos ouvidos, em muitos, fones para a trilha pop. Uma curiosidade… o que você está ouvindo? “Nando Reis”, diz a mulher de sardas, que alonga. O céu muda a cor da ribalta. E o ponto de ônibus vizinho ao famoso edifício projetado por Oscar Niemeyer (1907-2012) fica apinhado de gente.

Trabalhadores, estudantes e praticantes de atividades físicas cruzam caminho no traçado pulsante da praça. Os carros já são muitos e o ônibus 5102, rumo à UFMG, ajuda a aliviar a calçada. Dois setentões interrompem a marcha atlética: “Cê sumiu!”, diz, sorridente, o mais magro. “Só não vim ontem, uai”. Juntos, levam o assunto para mais de metro. Três amigas com cadernos nos braços cruzam a alameda. Lamentam a má fase no amor de fulana ausente. “Coitada. Falei pra ela fazer a fila andar”, comenta a morena. O professor de inglês e alemão Marcos de Souza Castro, de chapéu e sem camisa, lê Alan Maley. Toma sol enquanto exercita línguas.

CIGARRO, ONÇA E TATUAGEM Entre as tipuanas, o cabeleira aloirado puxa cigarrinho suspeito. Em quebrada, alheio aos andantes, curte o instante sem pressa ou compromisso. A dona morena veste figurino arrochado: blusa de oncinha e calça branca de brim. Espremida, caminha em direção ao cabeleira. Flerta e, por fim, despista ao perceber que o sujeito, na maré, espera outra onda. Nas costas do coreto fechado, o homem de dragão tatuado na canela usa o poste para alinhar a coluna. Aproveita o tempo do alongamento para observar as mocinhas mais bonitas. Por vezes, entorta o pescoço.

Mochila nas costas, outro catador de latinhas pausa a peleja para refrescar-se no bebedouro. Com ele, três sacos com latinhas e garrafas pets. João diz acordar às 3h todos os dias para jornada de 16 horas de andanças. Revela ganhar entre R$ 30 e R$ 35 por empreitada. “Também me dão roupa, comida, às vezes. Vou vivendo aqui e ali”. Cabisbaixo, diz ter 37 anos. Aparenta ter mais. A moça de corpo perfeito, personal, espera a aluna. Lê Sándor Márai. Nina, a cadelinha de luxo, branca como algodão, passeia feliz em família.

Espaço eleito melhor sala de aula por muitos professores para o ensino da arte, a grande arena Liberdade recebe alunos das mais diversas disciplinas. Aldo Célius, de 32, professor de design de interiores, vê no conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade “verdadeira inspiração”. De passagem, outra geração de estudantes movimenta o quadrante. São 35 crianças sob a guarda da educadora Cláudia Cristina, de 40, que fazem tour pelo circuito cultural. Na pista, alunos de educação física contam voltas pela matéria.

OS PÁSSAROS
Enquanto dois amigos da cabeça prateada, sem camisa, tomam sol junto ao chafariz, o guarda municipal ajuda o cego com o caminho até a biblioteca. O cheiro forte de peixe saído da fonte em manutenção faz sumir o perfume dos manacás e dos jasmins. Mais adiante, o show é das rolinhas e do canarinho solitário. Coadjuvantes, Melo, de 86, e Mário Goulart, de 90, tratam dos pássaros com alpiste. As rolinhas comem nas mãos da dupla e das crianças que se aproximam.


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