Jornal Estado de Minas

Um mergulho no cotidiano da Praça da Liberdade

EM conta histórias de quem faz o dia a dia de um símbolo de Belo Horizonte

Jaqueline Mendes
Cena do cotidiano: senhores de idade conversam na Praça da Liberdade - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

Respeitável, pública, a praçaCenário natural, de liberdade, em grande arena a céu abertoNobre, vivo, palco para personagens de alta estirpe ou de pouca sorte no mundo dos três turnos – ali, ricos e pobres são vizinhosAlma boa e suor de pequenos e gigantes aos pés do urdimento das palmeiras-imperiaisFolhas riscam a ribalta e rasteiras são as floresEntre as paredes invisíveis, coxias históricas que formam o maior complexo de cultura do paísEm espetáculo permanente, sob a bambolina das estações, cruzam-se as tramas do instante que não se repeteO efêmero sob a luz mutante dos astros refletores – como os ventosEm pauta, dia e noite de histórias na Praça da Liberdade.

Rosângela, de 43 anos, e Luiz Célio, de 42, são catadores de latinhasJá perderam as contas da vida nas ruasNa Região Centro-Sul, há pouco mais de ano
Madrugam para encher dois carrinhos de supermercado com restosPelo quilo dos achados o casal recebe R$ 2,40São precisos os dois caixotes sobre rodas abarrotados para a renda de R$ 15 por dia – para os doisNo bebedouro, água limpa para refrescar a nuca e matar a sede“Andamos muito, moçoDas 6h às 23hAfina as pernas, mas a barriga não acaba não”, diverte-se a mulherQuebram a esquina na companhia do cão Duke para garantir o pão do dia.

Outros três nômades, na fila para o bebedouro, sacam suas sacolas baratasDentro delas, escovas de dentes e creme dentalUm deles, o mais alto, tem até um estojo infantil Hot wheels, onde guarda kit higiene
Manda ver o fio dental no sorrisãoCheio de bom humor, Luiz, de 32, 33 ou 34, “sei lá”, diz que é pobre mas é felizConta que gosta de variar“Aqui, durmo só de vez em quandoNão posso dar mole, né não?”, sorriOs outros dois estão juntosMolham a cabeça e jogam água debaixo dos braços“Vou indo”, despede-se LuizPara onde? “Ainda não seiVou ali”, aponta para a Avenida Bias Fortes.

A metros do bebedouro, a pista vai sendo ocupada pelos “atletas”Gordos, sarados e magrelosTodos bem dispostosParticularmente animada é a turma com mais de 60Grupos de dois e de três, lado a lado, tomados de assuntoÀs 6h, chegam a impressionar pelo bom humor e pela satisfaçãoComo impressiona também a paixão do casal elegante, de roupas sociais, no banco, próximo ao pé de manacáNa casa dos 30 anos, feito canarinhos, beijam-se e carinham-se das 6h01 às 7h20Tamanho fôlego arranca comentário entre dois velhos: “Ah, meu tempo!”, brincou o bigodudo de boné da Ferrari.

Na manhã, o espetáculo e conjunto da obra na arena Liberdade é físico e biomecânicoCada ator em exercício no seu raio e sistema de alcanceUma variedade incrível na marcha em solo e no vaivém dos braçosHomens e mulheres, jovens e velhosNos ouvidos, em muitos, fones para a trilha popUma curiosidade… o que você está ouvindo? “Nando Reis”, diz a mulher de sardas, que alongaO céu muda a cor da ribaltaE o ponto de ônibus vizinho ao famoso edifício projetado por Oscar Niemeyer (1907-2012) fica apinhado de gente.

Trabalhadores, estudantes e praticantes de atividades físicas cruzam caminho no traçado pulsante da praçaOs carros já são muitos e o ônibus 5102, rumo à UFMG, ajuda a aliviar a calçadaDois setentões interrompem a marcha atlética: “Cê sumiu!”, diz, sorridente, o mais magro“Só não vim ontem, uai”Juntos, levam o assunto para mais de metroTrês amigas com cadernos nos braços cruzam a alamedaLamentam a má fase no amor de fulana ausente“CoitadaFalei pra ela fazer a fila andar”, comenta a morenaO professor de inglês e alemão Marcos de Souza Castro, de chapéu e sem camisa, lê Alan MaleyToma sol enquanto exercita línguas.

CIGARRO, ONÇA E TATUAGEM Entre as tipuanas, o cabeleira aloirado puxa cigarrinho suspeitoEm quebrada, alheio aos andantes, curte o instante sem pressa ou compromissoA dona morena veste figurino arrochado: blusa de oncinha e calça branca de brimEspremida, caminha em direção ao cabeleiraFlerta e, por fim, despista ao perceber que o sujeito, na maré, espera outra ondaNas costas do coreto fechado, o homem de dragão tatuado na canela usa o poste para alinhar a colunaAproveita o tempo do alongamento para observar as mocinhas mais bonitasPor vezes, entorta o pescoço.

Mochila nas costas, outro catador de latinhas pausa a peleja para refrescar-se no bebedouroCom ele, três sacos com latinhas e garrafas petsJoão diz acordar às 3h todos os dias para jornada de 16 horas de andançasRevela ganhar entre R$ 30 e R$ 35 por empreitada“Também me dão roupa, comida, às vezesVou vivendo aqui e ali”Cabisbaixo, diz ter 37 anosAparenta ter maisA moça de corpo perfeito, personal, espera a alunaLê Sándor MáraiNina, a cadelinha de luxo, branca como algodão, passeia feliz em família.

Espaço eleito melhor sala de aula por muitos professores para o ensino da arte, a grande arena Liberdade recebe alunos das mais diversas disciplinasAldo Célius, de 32, professor de design de interiores, vê no conjunto arquitetônico da Praça da Liberdade “verdadeira inspiração”De passagem, outra geração de estudantes movimenta o quadranteSão 35 crianças sob a guarda da educadora Cláudia Cristina, de 40, que fazem tour pelo circuito culturalNa pista, alunos de educação física contam voltas pela matéria.

OS PÁSSAROS
Enquanto dois amigos da cabeça prateada, sem camisa, tomam sol junto ao chafariz, o guarda municipal ajuda o cego com o caminho até a bibliotecaO cheiro forte de peixe saído da fonte em manutenção faz sumir o perfume dos manacás e dos jasminsMais adiante, o show é das rolinhas e do canarinho solitárioCoadjuvantes, Melo, de 86, e Mário Goulart, de 90, tratam dos pássaros com alpisteAs rolinhas comem nas mãos da dupla e das crianças que se aproximam.