Jornal Estado de Minas

Troca de turno: quando chega a tarde na Praça da Liberdade

O ambiente muda quando fica tarde: ciclistas, estudantes e outras tribos dividem espaço

Jaqueline Mendes

Durante a tarde a Praça é tomada pelos jovens para encontros, brincadeiras e namoros - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press


O movimento das nuvens revela novo ato na arena LiberdadeVão-se os mais velhos, os estudantes práticos a céu aberto e as criançasAconchegam-se nos bancos trabalhadores para a hora da sesta e, em gramados e calçadas, os adolescentes amigos para a tarde de encontrosEm número menor do que na parte da manhã, atletas amadores ainda trocam os pés na pistaNo espaço de liberdade, alheias aos olhares miúdos do preconceito, as mocinhas namoradas cruzam a alameda de mãos dadasOlham-se em encantosEscolhem o banco de costas para a alameda e lançam mãos nos cabelosNada de beijosSorrisos cúmplices apenas no silêncio dos carinhos.

Meninos e meninas, não menos enamorados, não deixam por menosUniformizados, beijam com a sede dos primeiros diasOs adultos cochilam
A diversidade cultural do lugar é o que mais chama a atenção do policial militar de plantão pela “operação visibilidade”Ônibus especiais com visitantes atraídos pelo circuito cultural ocupam uma das vias laterais da praçaCrianças e cachorros, vez por outra, cruzam a cena em famíliaDonos da cena, aos pés das palmeiras, são os adolescentes de escola estadual com pequena orquestra de violõesDescolados e amigos mandam ver repertório eclético do erudito ao popular.

Dois garotos, de no máximo 12 anos, correm na grama“A mulher tava pisando, por que eu não posso passar?”, desafia o outro, que responde: “Faz isso não, sôCê vai sobrar… ó o guardinha lá”, apontaA cuidadora de idosos acompanha o patrão cadeiranteOutros dois moradores de rua, no gargarejo, fazem uso do bebedouro contra o calor e pela higiene da horaAtrás da árvore, em pose para as lentes da dupla fotógrafa e cinegrafista, a debutante Karine Caroline, de 15
Vestida de branco, a estudante realiza o sonho antigo dos pais.

A mãe, Alessandra Almeida, de 32, conta que o álbum feito na Praça da Liberdade era a vontade do pai, Paulo Henrique, morto aos 23 anosKarine, pequenininha, tinha 3 anosDoze anos depois, a dona de casa se emociona ao ver a filha, especialmente bela, feliz para os cliques de Dayane Rodrigues, de 18, assistida por Gabriela Elias, de 21Para o duo profissional de imagens, a Praça da Liberdade é um dos cenários naturais mais belos de MinasO coreto é o que mais chama a atenção de DayaneJá Gabriela mostra-se encantada pelas palmeiras-imperiais.

Cinco skatistas se apropriam de parte da calçada para o ensaio de manobrasTomam impulso e rodopiam para lançar os skates ao alto, atraindo os olhares dos passantesNo banco junto às azaleias, casal adulto, lado a lado, dedilha os celularesO homem e a mulher navegam em silêncio, absortosEle vê vídeo de futebolEla, de unhas vermelhas, rola imagens na tela de rede socialTempos depois, levantam-se e vão embora abraçadosO militar de bicicleta reforça o patrulhamentoDo lado de dentro do coreto, protegidos por cerca de tela e lona preta, operários tentam dar conta da obra.

Do outro lado do Xodó, fast food cinquentenário de Belo Horizonte, publicidade no poste vende “amarração para o amor” e “vidência por foto”Perto dali, o totem espelhado de gosto duvidoso conta os dias para a Copa do MundoO que a senhora acha dessa obra? “Isso é feio demaisNossa! Não combina”, diz a costureira Maria Helena, de 43, de passagem para consulta médicaO vendedor ambulante, figuraça, manobra sua “ferrari, carregada de picolésUma caixa extravagante, vermelha e amarela, sobre rodas, que chega a espelhar de tão bem lustrada.

SAMBA E TROCADOS Tem samba na praçaDueto feminino afinado faz o pandeiro cantar Clara Nunes“Negro entoou um canto de revolta pelos ares no Quilombo dos Palmares onde se refugiou”Welington Pereira Rodrigues, de 32, vindo da Bahia, pede trocados“É para comprar um prato de comida, moçoA fome tá brava…”Na mão calejada, estendida, R$ 2,25 em moedasGanha mais R$ 5 e agradeceNo bolso, remédio: ibuprofeno para os dentes grandes, “trincando de dor”.

O pandeiro não páraAs duas sambistas agora entoam canção inédita, feita pela cabeleireira Suzi Castro, de 45A artista amadora sonha gravar em CD autoral“Posso dar o meu telefone de contato?”Claro(31) 9401-8265TaíAna Beatriz, ativista e parceira de Suzi, é coordenadora do projeto “coletivo negro”, no Aglomerado da Serra

IMAGENS CAPTURADAS COM TELEFONE CELULAR
As fotos para esta reportagem foram feitas com celularForam 18 horas de registros, em dinâmica distinta da habitual, com câmeras profissionaisMais experimental, o trabalho incluiu teste de cores, foco seletivo e uso de filtros oferecidos pelos aplicativosA leveza do aparelho proporciona liberdade no ato de fotografar e permite exercitar o olhar, buscar luzes diferentesHá preocupações adicionais, como atentar para a bateria do celular, que descarrega rapidamente“Não é a tecnologia que determina a qualidade da foto, e sim o olhar”, diz o fotógrafo Alexandre Guzanshe

LIMPEZA NOS BASTIDORES
A turma da limpeza também é destaque na Praça da LiberdadeTodos os dias, das 6h às 23h, quatro zeladores se revezam para conservar o lugarMário, de 21, feliz da vida com o ofício, exibe a vassoura feita por ele com tubo de PVC e folhas secas de palmeiraEstacionadas, lado a lado, as três vassouras na alameda sugerem Macbeth, de William Shakespeare (1564-1616)Nada trágico, porémPoliciais militares e guardas municipais fazem plantão permanente para tentar manter a ordem na arena.

 

JOGOS E BEIJOS

 

Casal namora em um dos bancos da praça - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press Algazarra para plateias no miolo da praçaGrupo de adolescentes faz uso de garrafa para jogo da verdadeComo resultado, beijaços entre meninos e meninos e meninas e meninasO povo para para verOs passantes mais discretos não mudam o rumoAinda assim, mostram-se ligadosA dona de lenço colorido na cabeça não deixa de comentar com a amiga loura: “O pai e a mãe nem tomam conhecimento”Para Ricardo Saraiva, de 34 anos, 16 tatuagens espalhadas pelo corpo, são episódios assim, “de liberdade”, que o trazem à praça“Quando estou estressado venho para cá”, diz o analista de sistemas e professor de muay thai.

Com o cair da noite, jovens escritores e poetas ofertam suas obrasA turma do jogo da verdade já deixou a arenaO azul do céu escurece rápido e transforma a estaçãoMal iluminada, a praça parece outraLuzes laterais, projetadas pelos automóveis do entorno, riscam o quarteirãoNo escurinho, os namorados se lançam à vontadeDuas meninas fazem dançar os cabelos e as mãos soltas no banco de madeira

Novos atletas, papais e crianças voltam à arenaAdultos, estudantes apressados, cortam a praça em direção às muitas faculdades da regiãoO termômetro marca 26 graus e os carros, como às 8h, voltam a tumultuar o tráfegoEm treino, praticantes de parkour, atividade que consiste em mover-se de um ponto a outro usando as habilidades do corpo, saltam desafios e impõem presença no espaço público

Outro engenheiro, Leonardo Rodrigues, de 30, é um dos 64 ciclistas do movimento Rolé Urbano de Terças (Ruts), reunidos próximo ao coreto para passeio de 18 quilômetros“Nossa filosofia é usar o movimento Ruts para educar o trânsito”, explicaO relógio feito arte por números enviados por pessoas ao redor do mundo, curioso, destaca prédio do complexoChuvinha fria, noite quenteOs balaços continuam livres e soltosJá são poucos os personagens na arenaBeira meia-noiteDo outro lado da rua, sob a marquise do Memorial de Minas Gerais, o casal evangélico prega salmo de Davi para três moradores de rua“Livra-me do homem violentoSenhor Deus, fortaleça a minha oração”, lê o homem de voz calmaNão muito longe dali, os catadores de latinhas Rosãngela e Luiz Célio retornam à praça para a madrugada de descansoAo lado, o fiel escudeiro Duke, o cãoCai o pano.