Jornal Estado de Minas

Segurança reforçada para juiz que condenou médicos no Sul de Minas

Após sentença que expôs médicos e autoridades, magistrado despacha armado e segurança do Fórum de Poços foi reforçada. Sentença aponta tráfico de órgãos e fraude em lista de espera

Mateus Parreiras

Poços de Caldas, Bandeira do Sul e Carvalhópolis  – O clima no Fórum de Poços de Caldas desde que foi divulgada a sentença que condenou médicos da Santa Casa local por tráfico de órgãos humanos é de tensão

A decisão não só expôs o que seria uma organização criminosa operando na saúde, mas também a “inoperância do poder público” nas investigações sobre  a máfia dos transplantesEsse comportamento estendeu prazos e levou penas a prescreverem, segundo um dos juízes“O Ministério Público (de Poços de Caldas) não é confiável: perde quase todos os prazos sobre esses casos (envolvendo a organização criminosa), não oferece denúnciasA Polícia Civil (da cidade) não dá andamento devido às investigações, não encontra testemunhas”, reclamou o juiz da 1ª Vara Criminal da cidade, Narciso Alvarenga Monteiro de Castro, em entrevista ao Estado de Minas no último dia 21O juiz prefere não falar mais sobre o caso, segundo ele para evitar polêmica, mas é nítida a preocupação com sua segurança e com a do Fórum de Poços de CaldasO magistrado agora preside as audiências com um revólver na cintura, debaixo do paletó; seu local de trabalho e guarda de processos recebeu mais vigilantes e policiais.

Depois que o magistrado chegou à cidade, em 2011, e a promotoria local foi afastada dos processos, dando lugar a integrantes do Centro de Apoio às Promotorias de Justiça Criminais (Cao-Crin), sediado em BH, os casos começaram a ser reabertos e um deles foi julgado, com a condenação de quatro réus em primeira instânciaA equipe do Estado de Minas descobriu em quatro processos detalhes das operações criminosas descritas pela Polícia Federal e Ministério PúblicoO grupo que os promotores classificam como “máfia”, além de envolvimento em mortes e tráfico de órgãos de pelo menos oito pacientes entre 2000 e 2001, teria ligações à época com a Santa Casa de Misericórdia de Poços de Caldas, onde ocorreram óbitos e cirurgias irregularesDuas auditorias de empresas particulares, feitas a pedido da Câmara Municipal, em 2002, confirmaram desvios na instituição, que concentra quase 90% de suas ações pelo Sistema Único de Saúde

De acordo com as investigações, as fraudes envolvendo órgãos humanos se dariam por meio de uma instituição clandestina, a MG Sul Transplantes, criada pelo grupo de médicos que atuava na Santa Casa e em outros hospitais
A instituição serviria para gerenciar a captação e transplante, burlando a lista oficial de espera por órgãos, gerenciada em Minas pelo MG TransplantesDe acordo com as apurações do Ministério Público que constam dos processos ativos, os pacientes dos médicos acusados, que faziam hemodiálise na cidade ou eram tratados por profissionais  do rol de contatos da organização, integravam uma fila pirata  de possíveis receptoresA reportagem teve acesso a essa relação, com pelo menos 81 nomes, sendo 11 deles das cidades paulistas de Aguaí, Divinolândia, Espírito Santo do Turvo, Limeira, Mineiros do Tietê, Mogi-Mirim, Mogi-Guaçu, São João da Boa Vista, São José do Rio Pardo e Vargem Grande do Sul.

Caminhos formais foram driblados

 Em uma operação regular de transplante, o hospital identifica o doador, avisa a equipe de transplantes e os órgãos captados seguem para o paciente que aguarda com maior prioridade ou com compatibilidade ideal na listagem estadual do MG TransplantesSe nenhum dos candidatos de Minas Gerais se encaixar no perfil, órgãos e tecidos podem ser remetidos a outro estadoÉ o hospital que fez a cirurgia de transplante que recebe a maior verba da tabela do SUS

O que a MG Sul Transplantes fazia, segundo as investigações, era concentrar captação e receptores, para que lucrasse o máximo possível do SUS pelas intervenções, chegando a haver registros de anestesias em cadáveres – as apurações levantam a possibilidade de que algumas vítimas ainda estavam vivas quando tiveram os órgãos extraídos – e cobrança por transplantes, que são gratuitos na rede públicaAs operações nem sempre eram bem-sucedidas, uma vez que duas das oito vítimas investigadas morreram recebendo órgãos.

A descrição da forma de atuação da quadrilha pelo Ministério Público revela detalhes de crueldadeSegundo as apurações, pacientes que poderiam se recuperar em unidades de terapia intensiva (UTI) eram mantidos propositalmente definhando em enfermarias, sem medicamentos e até sem alimentação, até que sua situação piorasseNesse estágio, eram levados às UTIs, apenas para manterem os órgãos em funcionamentoEnquanto o esquema convencia famílias a permitir a doação, por meio de psicólogos treinados e em ambientes com imagens de religiosas, era providenciado o candidato adequado da listagem pirata.



Médicos optam por silêncio


Os médicos citados no processo foram procurados, mas nenhum deles quis comentar as acusações
O consultório de Alexandre Zincone estava fechadoFélix Gamarra foi procurado na Santa Casa, mas a informação era de que ele não atendia no hospital, apesar de a equipe do EM ter ouvido de uma atendente da instituição, por telefone, que o médico estava em consultaPor meio de nota, a Santa Casa informou que nenhum dos investigados atua mais na unidade, que também nega envolvimento com uma suposta máfia dos transplantesA reportagem foi ao hospital, mas não foi recebida e nem foi designado um porta-voz para comentar o caso.
 Nessa segunda-feira, a equipe do EM procurou os promotores de Poços de Caldas na sede do Ministério Público local, o Edifício Manhattan, mas ninguém se prontificou a comentar o afastamento dos promotores locais dos casosA assessoria de imprensa do MP também foi procurada, mas não enviou nota ou permitiu contato com o promotor responsável em Belo Horizonte“A transferência do processo aconteceu porque os promotores da área criminal julgaram por bem transferir o caso para BH”, limitou-se a informar a assessoria, acrescentado que “isso pode acontecer e não prejudica o desenrolar do processo”.

A Polícia Civil informou, em nota, que todo procedimento relacionado ao fato em Poços de Caldas está em segredo de JustiçaO delegado regional de Poços, Gustavo Henrique Magalhães, rebateu as críticas de morosidade e afirmou que não há interferência sobre as investigações“O que o juiz ou o Ministério Público nos pedem é feitoO problema é que temos cinco delegados e cinco escrivãos, com 800 casos cadaEsses são fatos de mais de 10 anos, que estavam com a Polícia FederalInvestigar tudo agora é muito complexoMuitas pistas já se perderam”, disse