Jornal Estado de Minas

Provas no templo da bola

Vestibular nas arquibancadas do Mineirão marcou os anos 70 em BH

Por oito vezes, na década de 1970, o vestibular da UFMG foi realizado no Mineirão, com mais de 25 mil candidatos nas arquibancadas, sob a vigilância de soldados do Exército

Gustavo Werneck
Regime militar, por não confiar na capacidade de suas instituições de ensino superior para promover os testes, determinava sua realização centralizada, em espaço físico sob total controle de seus agentes. Quem não ficava à sombra era obrigado a usar todo tipo de proteção - Foto: ARQUIVO EM/D.A PRESS


A carteira escolar era a arquibancada, com o número do candidato marcado no cimento; a mesa, uma prancheta de compensado; e a sala de aula, o templo máximo do futebol no estadoDe 1970 a 1977, durante a ditadura militar, o vestibular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) foi realizado no estádio Mineirão, na Região da Pampulha, em Belo HorizonteEm vez dos gritos de gol e descontração das torcidas, imperavam o nervosismo e a ansiedade diante das provas de múltipla escolha, feitas durante vários dias por até 25 mil estudantes – hoje o processo seletivo reúne 80 mil.

Dentro e fora do estádio, o vestibular único, instituído por lei federal no fim dos anos 1960, na reforma universitária, se tornava um espetáculo de mídiaO esquema era rigoroso e não faltavam policiais militares, soldados do Exército e até cães ferozes na entrada do estádio, “num combate a um inimigo que não era inimigo”, diz o professor Mauro Mendes Braga, de 62 anos, formado em química e hoje atuando na gestão universitária como assessor do reitor Clélio CampolinaEle explica que o novo sistema representou a modernização do processo seletivo para o ingresso na universidade, mas, paralelamente, havia a visão dos militares de que se tratava de segurança nacional“Eles não confiavam na capacidade das universidade de fazer o vestibular e defendiam a sua realização por organizações como a Fundação CesgranrioE mais: que ocorresse de forma centralizada em espaço físico sob total controle.”

Para garantir ordem e segurança, as autoridades indicaram lugares no quais caberiam todos os estudantesAqui, o Mineirão – cedido pela Administração de Estádios do Estado de Minas Gerais (Ademg), então responsável pelo local, hoje sob o comando do consórcio Minas Arena –, no Rio de Janeiro (RJ), o Maracanã, e por aí vai..Antes de 1970, prevalecia o modelo bem diferente, já que as provas eram aplicadas nas escolas específicas (de direito, medicina, engenharia etc.), com exames práticos e oraisNuma comparação entre dois tempos, o professor Marcos conta que antes o vestibular era eliminatório“Havia um determinado número de vagas, e passar na prova não significava entrar na universidade

A situação gerava um grande número de excedentesCom o vestibular integrado, o quadro mudou e ele se tornou classificatório, com preenchimento de vagas em todos os cursosO sistema anterior era muito diferenciado de escola para escola, e com o vestibular integrado ficou mais idôneo.”

No estádio, nem tudo era concentração – mental, claro, e não própria dos jogadoresMesmo com o silêncio tomando conta no horário de provas, os estudantes tinham minutos de reserva para batucar nas pranchetas ou gritar o nome de alguma celebridadeEm 1975, o nome do jogador Tostão, já afastado dos gramados e candidato a uma vaga no curso de medicina, ecoou no estádio, tão logo ele foi avistadoNum dos vestibulares anteriores, o ex-craque do Cruzeiro e da Seleção Brasileira já havia estado presente, dessa vez numa prova de biologiaUma questão abordava a cirurgia, um traumático descolamento de retina, feita pelo atleta em Houston, no Texas (EUA).

Binóculos

- Foto: ARQUIVO EM/D.A PRESS Na manhã do dia 20, a coordenadora da Comissão Permanente do Vestibular (Copeve) da UFMG, Vera Resende, de 57, voltou ao estádio onde prestou vestibular para o curso de odontologia em 1974 e 1975No primeiro, ela não foi aprovada, mas, no segundo, passou em 14º lugar, recorda-se com orgulho“Fazer a prova no Mineirão era muito desconfortávelPior ainda quando começava a batucada nas pranchetas”, conta a coordenadora da Copeve, que não se esquece também dos candidatos gritando, em coro, o nome de Tostão
Voltando ao estádio depois de décadas, Vera, mestre em periodontia e doutora em clínica odontológica, ficou impressionada com as reformas e viu, de perto, que não há mais arquibancadas, somente cadeiras.

A cirurgiã-dentista Vera Lúcia Resende, de 57 anos, relembra com as amigas Maria Elisa de Souza, de 56, e Elen Marise Castro de Oliveira, de 59, os tempos do estádio como palco dos exames da UFMG - Foto: Edésio Ferreira/EM/D.A Press Vera visitou o Mineirão ao lado das amigas e também odontólogas e professoras da UFMG Maria Elisa de Souza e Silva, de 56, e Elen Marise Castro de Oliveira, de 59Com uma pontinha de nostalgia e dispostas a reviver os janeiros dos anos 1970, elas posaram para fotos segurando as pranchetas, no espaço remodelado e reaberto em 3 de fevereiro, com o jogo Cruzeiro x Atlético“Este era o lugar mais inadequado para se fazer uma prova”, disse Elen, lembrando das coincidências estudantis e profissionais entre ela e Vera: “Passamos no mesmo ano, formamos juntas e damos aula da mesma matériaSomos amigas há mais de 40 anos”Maria Elisa não se esquece do esquema de vigilância no estádio“Havia sempre gente de binóculos, nas cabines, monitorando os estudantes, embora houvesse muito espaço entre os alunos para não haver colaA gente levantava a cabeça e dava de cara com eles lá no altoE havia muitos fiscais, de pé o tempo todo, circulando entre os estudantes.”

Sol no rosto

- Foto: ARQUIVO EM/D.A PRESS “O pior mesmo era o solMesmo que o aluno estivesse na sombra, tinha momentos em que ficava com ele bem no rosto”, conta Maria ElisaFotos do arquivo do Estado de Minas mostram alguns estudantes criativos transformando caixa de papelão em chapéu a fim de se proteger da forte claridadeAtual diretora do Centro Esportivo Universitário (CEU), vizinho do Mineirão, e ex-diretora da Faculdade de Odontologia, Elen Marise prestou vestibular em 1972A pior parte da história, segundo ela, era mesmo o desconforto“Não tinha lugar de encostar, nada de ergonomiaEra realmente um absurdo”, afirmaNo cartão de inscrição, estava impresso o número do portão, pelo qual o candidato deveria entrar, e o lugar na arquibancada.

Depois de todo o sufoco dos exames, era hora de esperar o resultado e, dependendo dele, correr para o abraçoMelhor mesmo era ouvir o nome no rádioNaqueles tempos sem internet, algumas emissoras divulgavam a lista integral dos aprovados no maior vestibular de Minas, um por umEntão, em casa ou entre amigos, esse momento virava uma festa e as tesouras entravam logo em ação para tosar os cabelos longos, como era moda naqueles distantes anos de 1970.


Linha do tempo
1970 –Por determinação do governo federal, a UFMG institui o vestibular único, que uniformiza o processo seletivo de acesso aos cursos superioresEm janeiro, provas são aplicadas no Mineirão
1977 –Vestibular deixa de ser realizado no Mineirão e provas passam a ser aplicadas em prédios da UFMG e de outras instituições de ensino da capital
1988 – Criada a Comissão Permanente do Vestibular (Copeve), vinculada à reitoria da UFMG e responsável pela determinação e execução de todas as atividades relativas ao processo seletivo
2009 –A universidade federal institui o sistema de bônus para estudantes de escolas públicas
2010 –O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) passa a ser a primeira etapa do vestibular da UFMG
2012 – Provas do vestibular (segunda etapa), nos câmpus de Belo Horizonte e de Montes Claros, no Norte de Minas, são realizadas apenas em prédios da UFMG
2013 – Entra em vigor no vestibular o sistema de cotas, que elimina o bônus