Jornal Estado de Minas

Reencontro de esperança

Quase 4 décadas depois de ser deixado pelos pais, taxista embarca prima e refaz história

Taxista foi abandonado no Vale do Rio Doce e teve vida cheia de angústias desde então

Jaqueline Mendes
- Foto:
Fim de 2012Numa das curvas do destino, o taxista Eduardo Damasceno Monteiro, de 43 anos, encosta o carro para reencontrar o passado e rever a vidaNa esquina de ruas Dona Cecília e Palmira, no Bairro Serra, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, mulher e filho entram no automóvel de aluguelBrenisia Ferreira Monteiro, de 40, e Jonatas, de 11, indicam o endereço para a corrida curta, de quarteirõesEduardo, atento ao caminho, não percebe o olhar diferente da passageira ao ver, no painel, o documento de identificação do motorista“Seu Monteiro é de onde?”, pergunta BrenisiaDaí em diante, o que segue é desfiar de quase quatro décadasTempo iniciado com o nascimento de “uma criancinha branquelinha, magrelinha, criada sem pai nem mãe, largada na roça” – palavras de BrenisiaUma história tocante que traz de volta o fim dos anos 1960, em Santo Antônio dos Araújos, povoado de São Sebastião do Maranhão, no Vale do Rio Doce.


“Nunca esqueciNão podia esquecer o Nego, menininho branquelinho, muito miúdo, que brincava com a gente na fazendaSempre quis reencontrá-lo

Ele era filho do meu tio, mas agora há uma conversa na família que ele é filho do meu pai”, emociona-seBrenisia, ao lado de Eduardo, fala na semelhança entre eles“Quando entrei no carro, antes mesmo de ver o nome dele, senti algo diferenteQuando vi o Monteiro escrito, não tive dúvida”, ressaltaA costureira revela que passou anos procurando por ele em Belo Horizonte“Quando soube que ele morava em Ribeirão das Neves e que trabalhava com táxi, fui até lá e procurei, perguntei até, mas ninguém sabia dele”, contaNa sala da parente, Eduardo, na contramão do tempo, revisita o passadoDeixa escapar lágrimas, por vezes.

Brenisia não se intimida e desabafa, inflamada, com a criação largada do pequeno Nego, na roça“Pais que deixam os filhos para trás dão um péssimo exemploAs crianças nada têm a ver com os erros dos adultos”, diz
Eduardo rompe o silêncio, embargado“Não importa a quantidade de filhosFala assim: ‘Ah, tive 10 filhos, por isso deixei um para trás’Não está certoNão pode, nãoSe não tem condição, então morre todo mundo junto”, revolta-se

O taxista não dá conta de esconder a angústia pela infância longe do pai e da mãeO reencontro com Brenisia trouxe à tona a vontade de Eduardo de conhecer o pai, Mário Ferreira Monteiro, que mora em São PauloAgora, espera para saber se é filho do outro Monteiro, o pai de BrenisiaPrimos, ou irmãos, os dois já combinaram exame de DNA em família.

VERDADE
Na casa de Eduardo, em Ribeirão das Neves, na Grande BH, Amélia da Silva Matos Monteiro, de 39, e a pequena Yasmin, de nove meses, são o esteio do taxistaA mocinha, no maior dengo com o pai, faz festa para os visitantesPosa para foto, cheia de mimo com os paisAmélia suspira ao ouvir o passado do maridoAjuda-o a encontrar documentos e fotografias que comprovem as passagens incríveis que ele desfiaNuma delas, conta a vida no alambique, no povoado de Araújos, aos 7 anos, “fazendo e bebendo cachaça o dia inteiro”Chora ao falar da vida difícil, maltratado pela família do avô paterno“Minha mãe não tinha condição de me criar e me deixou na casa do pai do meu pai… pelo que soube, eu tinha um mês de vidaLá, eu vivia no estábulo, largadoMas nem me lembro direito”, diz.

Ao colo, Yasmin, de expressão séria e concentrada, não entende a tristeza do paiAmélia faz carinho e sai da sala com a mocinhaEduardo conta que “andou errado” e que teve outra filha fora da união de 18 anos com Amélia“Minhas coisas são tudo direitoAté quando eu erro eu tento fazer a coisa certaVirei para minha mulher e disse: ‘Quem faz a coisa errada um dia a casa caiE a minha caiu’Ela chorou muito, mas entendeu e me aceitouPorque não existe nada melhor que a verdade”, ensinaMaria Eduarda, de 3 – a filha fora do casamento –, é vizinha“Na medida do possível, está sempre com a gente aqui em casaO quarto dela é aquele ali”, aponta.


Volta por cima

Entre as desventuras na fazenda dos Monteiros, Nego, aos 8 anos, conseguiu morada na casa do prefeito de São Sebastião do MaranhãoLá, diz que foi muito bem tratado e que conheceu uma outra condição de vida Mas não durou muitoConta ter feito xixi na cama e que, por isso, fugiu numa madrugada“Fiquei com tanta vergonha que nunca mais tive coragem de voltar lá”, sorri, tímidoAcabou de volta às terras do avô, onde ficou por mais dois anosAos 10, arranjou trabalho em povoado vizinho e foi morar num galpão“A gente morava tudo juntoTinha muita criança e muito adultoTudo funcionário da fazendaAí, com uns 15 anos, comecei a namorar a filha do patrão e foi aí que a minha vida mudou”, revela.

Foi aos 17 que Eduardo diz ter colocado o primeiro calçado no péÉ também dessa época a primeira fotografia que ele faz questão de mostrarNo papel envelhecido, com número escrito em garrancho – 21.5.89 –, a imagem de um jovem triste, a cavalo, se esfarela com o tempoO taxista deixa a sala de visita no sobrado do Bairro ElisabethVolta com refrigerante e pasta de documentosExibe a certidão de nascimento, registro de 3 de novembro de 1987“Nem sei ao certo o dia em que nasciNem meu pai nem minha mãe estavam no cartório Eu precisava de documento porque nem existiaFui atrás do meu avô e pedi para ele me registrarEle foi lá e fez a minha certidãoMas erraram o nome do meu pai e da minha mãeOlhe só…”

Documentado, endereço da mãe nas mãos – anotação de parente distante –, em 1989, Eduardo decidiu procurar a mãe em Ribeirão das Neves“Eu já era homem feito e vi a minha mãe pela primeira vez depois de quase 20 anos que ela me deixouEla mora aqui pertoVamos lá?” Não demorou para encontrar a rua estreita, vizinha de bodes, cabras e galinhasCrianças brincam alegresMaria Damasceno Soares, de 62, simpática, tem o olhar profundo, da vida difícil, mãe menina de Eduardo mais oitoNa sala da casa de família, dona Maria conta que tentou buscar o filho“A família do pai não deixou”, dizA irmã mais velha de Eduardo, Maria Aparecida, confirma.

CARINHO A professora é outra que cresceu sem o pai“Não sei deleO que me falam é que ele está vivo.” Maria Aparecida se emociona ao relembrar o dia em que, adulta, foi atrás do pai“Deixei o endereço, meu contatoEle nunca deu notíciaNaquele instante, não senti nenhum afeto, nenhum carinho da parte dele.” A professora lamenta a pouca sorte no passado e critica os pais ausentes “Pai e mãe precisam cuidar melhor dos filhosA família é a baseSão filhos demais no mundo e pouca responsabilidade.” Eduardo ouve atento, enquanto dona Maria Damasceno suspira silenciosa.

Eduardo morou pouco tempo com a mãe e seguiu seu rumo“Fiz Mobral, estudei legislação e realizei o sonho de tirar carteira de habilitação”, conta Trabalhador – são 16 horas diárias, de segunda a segunda, ao volante –, o taxista, auxiliar, diz lutar para não deixar faltar nada para as filhas, Maria Eduarda e Yasmin“Só quero ter uma condição melhor para ter mais tempo para as duas, porque chego a passar dias sem ver as minhas filhasNinguém pode crescer sem os paisNinguémDói demais Muito mesmo”, chora.

De volta à corrida pelo Bairro Serra, o reencontro com Brenisia trouxe a Eduardo novas alegrias“Agora, a gente não some nunca mais”, sorri, enxugando as águas com as costas das mãos.


“Ninguém pode crescer sem os paisNinguémDói demais
Muito mesmo”

Eduardo Damascento Monteiro, taxista, de Ribeirão das Neves