Barbacena – Às 22h, a luz dos alojamentos se apaga e é dado o toque de silêncioDe repente, em uma das dezenas de camas precisamente alinhadas, sob seu cobertor, um aluno solta um choro baixo, abafado Vez por outra a cena se repete, principalmente entre novatosMuitos sentem falta da família, do quarto bagunçado, de ficar acordado até tardeAlguns desistem, mas outros – a maioria – acabam gostando da rotina rigorosa e continuam a perseguir o sonhoQuerem ser pilotosSão estudantes da única instituição que, além de oferecer os três anos do ensino médio, é uma porta de entrada para a Força Aérea Brasileira: a Escola Preparatória de Cadetes do Ar (Epcar), localizada em Barbacena, no Campo das Vertentes, a 173 quilômetros de Belo Horizonte.
O grande objetivo de quem se matricula na Epcar é ingressar na Academia da Força Aérea (AFA), instalada em Pirassununga, no interior de São Paulo A escola acolhe jovens entre 14 e 18 anos, apenas rapazes, que precisam ser aprovados nos testes de português e matemática do exame de admissão, o “vestibulinho”A concorrência é sempre altaNeste ano, 10.654 candidatos disputaram 215 vagas – 49,5 por vagaAinda que já tenha concluído o ensino médio em uma escola civil, o aluno precisa começar novamente pelo primeiro dos três anos, chamados de esquadrões no jargão militar.
Hoje, a instituição soma 596 alunos, em regime de internato
O rapaz é de Uberlândia, no Triângulo Mineiro, onde morava com os pais e uma irmãComeçou a se apaixonar por aviação na infânciaO pai era mecânico de avião civil e o garoto o acompanhava nos aeroportos
Ele é o mais bem avaliado entre os alunos do 1º ano do ensino médioNa vasta cadeia de lideranças da Epcar, ele é o que chamam de 01 – pronuncia-se “zero um”O excelente desempenho rende privilégiosTodos os alunos, inclusive os dos outros anos, devem lhe prestar continênciaUsa fardamento especial e bibico de oficial, que é azul e tem um fio prateadoNo começo, porém, foi difícil enquadrar-se nas novas exigênciasSobretudo no período de adaptação por que passam todos os calouros, que dura cerca de 15 dias “Achei meio puxadoA maior dificuldade foi acordar cedo, controlar os horários”, recordaNa escola, às 6h em ponto um corneteiro anuncia que todos devem se erguerAntes de deixarem o alojamento, tudo deve estar impecavelmente forrado e dobrado.
Matheus costuma estudar depois do jantar, entre 19h e 20hNo alojamento, antes de dormir, engraxa os sapatos e alisa as vestes com ferro de passarSó visita Uberlândia em feriados prolongadosOs fins de semana em Barbacena são pouco movimentados, já que “na cidade não tem muito o que fazer para quem é menor de idade”, observa“Do que a gente mais gosta é comer algo diferenteÀs vezes, a comida daqui (Epcar) não é muito boa”, avalia, encabulado.
Exigências
Também para Leidson, a adaptação à Epcar foi sofrida“Pensei que não era para mimAlém de ser muito apegado aos pais e amigos, era acostumado a ver televisão, dormir tarde e acordar a qualquer hora, a fazer o que quisesse”, justifica, tímido, olhando para baixo, esfregando as mãosSó se apaixonou por aviação depois que entrou na EpcarO que lhe atraiu ali foi o fato de, segundo ele, os alunos gostarem de aprender e serem muito exigidos, ao contrário do que se passava em seu antigo colégio, onde “as pessoas encaravam os estudos como se fosse obrigação”Mesmo assim, na escola da Aeronáutica de Barbacena, também há coisas típicas das instituições civisEm seu tempo livre, Leidson gosta muito de ler romances e livros de históriaE os colegas caçoam dele por isso.
Conduta militar
Os alunos da escola estão sujeitos aos valores e regras de conduta fixadas no Estatuto dos Militares, Lei 6.880, de 1980As “transgressões disciplinares” são corrigidas de acordo com o Regulamento Disciplinar da Aeronáutica (decreto 76.322, de 1975)Cadete é o nome dado a militares em formação para se tornarem oficiais das forças armadasNa hierarquia de postos e graduações da Aeronáutica, o cadete equipara-se ao segundo sargentoApesar de ser militar, o aluno da Epcar só se torna cadete após ser selecionado para a AFA, que aplica um exame anual de admissãoEm tese, os formandos da Epcar são os mais bem preparados entre todos os candidatosPara serem aviadores, têm que passar no teste de aptidão à pilotagem militarAssim como os demais concorrentes, devem apresentar boas condições de saúde, psicológicas e físicasMas gozam do privilégio de não se submeterem ao exame de escolaridade, com provas de português, física, matemática e inglêsAlém das disciplinas previstas na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da educação, o currículo da Epcar inclui matérias puramente militaresAs aulas de “conduta social e militar”, por exemplo, explicam os comportamentos adequados ao militar em diferentes situações “Demonstrar e difundir os sentimentos de amor à Pátria” é mais um dever do aluno“Muitas vezes, a disciplina é vista de forma pejorativa, mas ela só ajuda a canalizar sua energia para um objetivo”, defende a coordenadora pedagógica da instituição, o tenente-coronel Denise Medeiros.
Alunos do Rio são maioria
Os mineiros não são maioria entre os alunos da EpcarOs fluminenses costumam conquistar o maior número de vagas, tradição que talvez nasça do fato de as primeiras escolas de aviação militar terem funcionado na cidade do Rio de JaneiroEm 2011, por exemplo, dos 1.847 que alcançaram a nota de corte do “vestibulinho”, 329 eram daquele estadoMinas somou 84, seguido por Ceará (63), São Paulo (61) e Distrito Federal (21)A convivência com pessoas de todas as regiões do país é um dos aspectos mais proveitosos da estada na escolaÉ o que atestam Juraci Bispo, de Brasília (DF), e Gabriel Camolez, de Bauru (SP), ambos alunos do 3º ano.
“Sinto falta do aconchego da famíliaFoi difícil me acostumarLá fora, não passava roupa, não engraxava, não acordava tão cedo”, diz Gabriel, de 20 anosJuraci, de 17, acrescenta: “Com o passar do tempo, a gente vai fazendo amigos, fica mais fácil”Os dois só se entregam ao carinho dos familiares em feriados prolongadosAs folgas em Barbacena, afinal, também podem ser divertidas“Tem muito lugar pra comerTem shows, festas”, diz Gabriel “Festas a que vamos sempre com a devida autorização do alto comando”, ressalta ele, meio brincalhão, meio sério, lançando um olhar para a chefe da Seção de Comunicação Social da Epcar, o segundo tenente Vanessa Ortolan dos Anjos – diz-se assim mesmo, no masculino –, que acompanhou a conversa.
Além de festas e shows, Barbacena tem garotasDesde o início da Epcar, em 1949, sabe-se que algumas delas mostram uma quedinha especial por cadetesHá gerações, ela são chamadas pelos alunos de “cadeteiras”, como as “marias-chuteiras” do futebol“Hoje, há dois tipos de mulheres na cidadeAlgumas não gostam de cadete, porque tem a fama de ser metido, de não querer compromisso, de ficar só por ficarE há as cadeteiras”, explica GabrielÀs vezes, a gente é mal visto pelos rapazes da cidade, porque a gente pega as mulheres deles”, acrescenta, lançando outro olhar ao tenente VanessaPara diminuir as chances de ciúmes causarem discussões e brigas com jovens civis, passou a ser proibido aos alunos da escola passearem em trajes militares.
Assim como Matheus, Gabriel e Juraci também se destacam entre seus pares Gabriel foi eleito líder dos alunos do 2º ano, enquanto Juraci é presidente do comitê do código de honraEle e os outros 23 membros do comitê devem cuidar para que jamais se desrespeite o código, jurado por todos: “Nós nos comprometemos com a verdade, com a honestidade e com a justiça, bem como repudiamos entre nós atitudes contrárias a essas” Quem entra na escola logo se depara com os “valores fundamentais” gravados em uma parede, sobre o “sabre alado”, o brasão da Aeronáutica: dignidade acima de tudo, servir por ideal e aprender para liderar.