O trem de passageiros não apita há décadas, o movimento na plataforma de embarque ficou só na memória e o que restou do prédio está escoradoMas a luta de moradores e defensores do patrimônio de Chiador, na Zona da Mata, não para nos trilhos e vai às últimas consequências para preservar o seu ícone arquitetônico – a estação ferroviária, primeira de Minas, inaugurada em 1869 pelo imperador dom Pedro II (1825–891)Nesta semana, o Ministério Público (MP) estadual ajuizou ação em Mar de Espanha, na mesma região, contra a estatal Furnas Centrais Elétricas S.A., para que a empresa restaure o bem cultural e não apenas o seu entorno, como compensação por construção de hidrelétrica
Segundo o promotor de Justiça da comarca, Daniel Ângelo de Oliveira Rangel, a estatal foi obrigada, como condicionante do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis (Ibama) para implantação do Aproveitamento Hidrelétrico de Simplício (AHE), a fazer o tratamento paisagístico “Queremos que o prédio histórico também seja recuperado, pois tem grande importância para a nossa históriaAlém disso, o empreendimento fica a pouco mais de 300 metros da estação”, afirma Rangel, autor da ação com o coordenador das Promotorias de Justiça de Defesa do Patrimônio Cultural e Turístico de Minas Gerais (CPPC), Marcos Paulo de Souza Miranda.
Antes pertencente à extinta Rede Ferrroviária Federal (RFFSA) e hoje de propriedade da União e sob guarda do município, a construção em ruínas foi tombada em 2003 pela Prefeitura de Chiador“O prédio está em degradação avançadaForam feitas obras emergenciais, mas é preciso um serviço de restauro que, no futuro, dê ao prédio condições de sediar, por exemplo, um centro culturalEle é fundamental para o patrimônio de Chiador”, afirma Rangel
Segundo ele, já houve uma reunião com representantes de Furnas, mas a empresa não aceita fazer o serviço Estranhamente, a medida compensatória contemplou apenas o tratamento paisagístico, deixando de lado o restauro da edificação histórica a poucos metros do gigantesco empreendimento
Impacto
No documento, os promotores de Justiça destacam a importância econômica da estrutura ferroviária do município, que proporcionou considerável desenvolvimento econômico e social da região, além do transporte da rica produção cafeeiraDiz o texto: “As características dominantes da centenária edificação são neoclássicas, cores claras, enquadramento e molduras em argamassa, elementos de ferro muito usados em estações ferroviárias e alguns elementos coloniais, com vergas retas e grande cobertura”
O certo é que a chegada da estrada de ferro a Chiador, ressalta Daniel Rangel, propiciou o intercâmbio com outras localidades, inclusive o litoral, e promoveu o surgimento das indústrias de laticínio e cerâmica“O intenso comércio com o Rio de Janeiro garantiu o crescimento do povoado, que, em 1880, se tornou distrito de Mar de Espanha.”
O coordenador do CPPC lembra que Furnas concorda em revitalizar apenas o entorno, “menosprezando a edificação em si, a mais antiga de MinasComo há impactos negativos no patrimônio cultural de Chiador, especialmente ao conjunto ferroviário, é necessária a compensação ambiental por força da responsabilidade civil – que, no caso, é objetiva – e da incidência do princípio do poluidor-pagador”.
Estrada de ferro abandonada
O diretor de departamento da prefeitura, Giovane Silva e Silva, está preocupado com a situação do prédio, que perdeu paredes e cobertura, mas é passível de recuperação“A prefeitura quer a obra, mas não tem verba para executá-laO escoramento foi conduzido com recurso do ICMS Cultural”, informaLocalizado na comunidade de Chiador Estação, a seis quilômetros do Centro da cidade de 3 mil habitantes, o patrimônio, segundo Giovane, aguarda um projeto para tirá-lo da decadência“Furnas tem grande poder financeiroChiador vive da pecuária
Em nota, a estatal esclarece que não foi comunicada oficialmente sobre qualquer ação judicial requerendo a restauração da estação ferroviária de Chiador, localizada no entorno do Aproveitamento Hidrelétrico de Simplício (AHE)A empresa informa ainda que, entre as medidas compensatórias para construção do empreendimento, está prevista a recuperação paisagística do entorno da estação e a implantação de vias de acesso até o atracadouro (para pequenas embarcações) a ser construído no reservatório da Usina de Anta, além de área de lazer e de atividades esportivas
Sobre o AHE Simplício, a empresa informa que se trata de duas hidrelétricas – Anta e SimplícioO empreendimento terá capacidade total instalada de 333,7 MW, energia suficiente para abastecer uma cidade de 800 mil habitantesO aproveitamento hidrelétrico abrange quatro municípios: Três Rios e Sapucaia (RJ), Além Paraíba e Chiador (MG)
MEMÓRIA: A visita de dom Pedro II
A estação foi inaugurada em 1869 no antigo povoado de Santo Antonio dos Crioulos, atual município de ChiadorSegundo os especialistas, o nome é atribuído ao chiado que as corredeiras faziam no Rio Paraíba e eram ouvidos por ali – o rio ficava a cerca de 500 metros da estação, no ramal de Porto Novo da Estrada de Ferro Dom Pedro IIA estação ferroviária de Chiador constitui um exemplar arquitetônico do século 19 e um espaço considerado “lugar de memória, de significativo valor cultural para a comunidade local e para a sociedade mineira”, segundo o MPNa abertura oficial, o imperador dom Pedro II chegou em comitiva, segundo registros, para assistir ao lançamento dos primeiros trilhos no território da província de MinasCompareceram os ministros da Agricultura e da Marinha e outras autoridadesAs estação teve seu valor histórico, artístico e cultural reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan).
Outros tempos: Um retrato da juventude
Ailton Magioli
“Há pelo menos 30 anos acompanho de perto a luta da população de Chiador para ver a primeira estação ferroviária de Minas restauradaDe representantes da extinta Rede Ferroviária Federal a lideranças políticas, não faltaram, desde então, (falsas) promessas, enquanto o imóvel ia definhandoHoje literalmente no chão, com as poucas paredes que restaram escoradas, o imponente prédio é retrato destruído da minha juventude, quando, aos sábados, usávamos o trem para retornar da vizinha Três Rios, no estado do Rio de Janeiro, onde íamos estudarA chegada ao município e vizinhança de empresas poderosas como Furnas (Hidrelétrica de Simplício, ainda em obras) e Nestlé (fábrica de bebidas, estrategicamente instalada às margens da rodovia BR-040, em Três Rios, deixa a população ansiosa, na expectativa de que alguma delas patrocine a restauração do ícone de Chiador que, a 27 de julho de 1869, recebia o então imperador dom Pedro II acompanhado da princesa Isabel e do Conde d’Eu, entre outras autoridades, para a inauguração da estação Com a palavra as iniciativas pública e privada.”