Jornal Estado de Minas

Casais gays derrotam preconceitos no interior de Minas

Gays que vivem nas cidades de Minas onde há maior percentual de casais homossexuais, segundo o IBGE, não têm medo de se assumir

Tiago de Holanda

Tiago e Júlio namoram há 15 meses e vivem juntos em Pequeri. Família teme que eles sejam vítimas de agressões - Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press

Pequeri e Rodeiro – As pessoas baixam a voz, conversam aos cochichos, sorriem com constrangimento, deboche ou malíciaDiscretamente, com a cabeça ou o olhar, apontam alguém que passa e dizem: ''Aquele é'' — assim mesmo, deixando o verbo no ar, como se a palavra ausente fosse palavrão, crime, pecadoA homossexualidade costuma ser um assunto incômodo em Pequeri e Rodeiro, duas pequenas cidades mineiras que, inesperadamente, surgiram no topo do ranking nacional das que têm maior proporção de casais homossexuais vivendo sob o mesmo teto.

Segundo dados do Censo 2010 do IBGE divulgados na semana passada, Pequeri e Rodeiro, situadas na Zona da Mata mineira, são a quarta e a quinta colocadas no Brasil, respectivamente, em percentual de uniões homoafetivasEm Minas, os dois municípios só perdem para Tiradentes (0,14%), terceiro no país, atrás de Águas de São Pedro (0,18%) e São João de Iracema (0,17%), ambos em São PauloA 312 quilômetros de Belo Horizonte, Pequeri apresenta 0,13% de casais em relação à população total de 3.165 pessoasJá Rodeiro, a 262 quilômetros da capital, abriga 0,12% de casais em 6.867 habitantes.

Os números do IBGE sugerem que a quantidade de enlaces seja quase insignificante: dois em Pequeri e quatro em RodeiroPorém, há quem garanta que há maisNa primeira cidade, os moradores parecem ser unânimes em reconhecer a existência de apenas um par homossexual “assumido”“Sei de outros casais, uns seis, mas é um pessoal dentro do armárioSó o Júlio assume”, diz Elisângela Carvalho, de 31 anos, que trabalha expedindo vendas em uma fábrica de confecção de peças íntimasJúlio César Freitas, de 20, é repositor de mercadorias nas prateleiras de um supermercado do Centro

Há um ano e três meses, ele namora Tiago Xavier, também de 20, costureiro na mesma fábrica de Elisângela.

Júlio nasceu em Três Rios (RJ) e há 11 anos se mudou com os pais para PequeriNa casa simples onde moram, em um bairro de periferia, acolheram Tiago pouco depois do início do namoroNo município vizinho de Mar de Espanha, Tiago deixou a família, que frequenta uma igreja evangélica e não aceita o relacionamento do jovem, bem aceito em seu novo endereçoCaseiro de uma fazenda da região, o pai de Júlio, Sebastião, é de poucas palavras e, tímido, responde que concorda com o que a esposa disserA dona de casa Maria Cristina de Freitas, de 41, ficou apreensiva quando os dois apaixonados passaram a andar por aí de mãos dadas: “Deu um pouco de medo, mas, graças a Deus, nunca fizeram nada com eles”.

Os rapazes nunca foram agredidos fisicamente, mas já ouviram muitas provocações e ofensas“Foi aquele choqueAs pessoas olhavam torto, riamFalavam que a gente tinha que apanhar para tomar vergonha na caraA humanidade é um pouco cruel”, constata JúlioAgora, “eles aceitam mais, mas ainda olham como se fôssemos ETs”, sorri Tiago
Os dois já usam aliançasNa tarde de quinta-feira, o casal fez um de seus habituais passeios pela principal ponto de encontro de Pequeri, a Praça Prefeito Geraldo Fulco, no CentroJúlio espetou os cabelos com gelA camisa branca expunha os pelos raspados do peito de Tiago, que tem aparelho nos dentes, piercings nas orelhas e na língua.

PIADAS NA PRAÇA

Os dois caminharam de mãos dadasUm grupo de homens interrompeu o jogo de baralho para olhar e fazer piadas em voz baixaO casal se sentou em um banco e algumas crianças se espantaram“Olha lá, parecem namorados”, disse uma garota, sentada sobre sua bicicletaUm senhor de 50 anos, que não quis se identificar, disse que viu dois homens se beijarem pela primeira vez quando as bocas de Júlio e Tiago se uniram bem ali, na praça“Já ouvi dizerem que os dois mereciam uma coçaO pessoal não gosta”, disse Elisângela, a funcionária da fábrica de peças íntimasEla e a auxiliar de serviços gerais Lucimere de Andrade, de 38, se preocupam com o que as crianças vão pensar“E se meus filhos tiverem curiosidade, quiserem experimentar? Seria melhor se eles (Júlio e Tiago) fossem mais reservados”, sugere Lucimere.

Franciane Ruphino, de 27, não é nada “reservada”No dizer dos moradores de Pequeri, ela é a única mulher homossexual que não se escondeUm olhar apressado pode fazer crer que Fran, como é conhecida, é um garotoGosta de andar de bicicleta, boné para trás, camisas folgadas e bermuda abaixo do joelhoO corte do cabelo — raspado nos lados, curto na frente e longo na nuca — é “igual Drogba”, diz ela, referindo-se ao jogador de futebol, seu esporte predileto.

Fran mora com a mãe, o padrasto e três irmãosVive fazendo bicos como jardineiraDos 15 para os 16 anos, descobriu o gosto pelo mesmo sexo ao se apaixonar por uma amiga“Quando percebi, sofri pra caramba, achei que era erradoMinha mãe ficou bolada”, recorda“Não me importo com a opinião dos outrosSou meio amoladaQuando assumi, impus respeitoSempre respeitei minhas amigas, as namoradas dos meus amigos.” Ela reclama que, em Pequeri, alguns relacionamentos não deram certo porque a outra tinha medo de se expor“Já fiquei com mulheres que ninguém nem sonhaAqui, os casais são reservados, não demonstram, embora todo mundo saiba, né, cara?”

Sem levantar bandeiras

Se a vida de casais homossexuais não é fácil em Pequeri, em Rodeiro não é menos complicadaTambém lá, quase todo mundo baixa o tom de voz ao falar sobre o assuntoA pintora de móveis Mariléia Carneiro, de 37, não se surpreende ao saber dos dados do Censo 2010 do IBGE“Ih, aqui tem muitoÉ homem com homem, mulher com mulher”, observa, com um sorriso maliciosoA dona de casa Elisabete Rafaela da Silva, de 36, confirma, mas ressalta: “Os casais não aparentam muito, são reservadosAs pessoas aqui recriminam muito”.

Fábio Paiva, de 26, é decorador do salão de festas mais requisitado da cidade, pertencente a Felipe de Abreu, de 32Os dois moram juntos há dois anos, em casamento informalNo escritório da empresa, um mural exibe fotos do casal sorridente, em festas finas, usando trajes elegantesFábio diz que, pouco depois de perder a vergonha de ser homossexual, sofreu “um pouco de rejeição” de sua família“Só fui aceito quando mostrei que sou uma pessoa de bem”, lembraO casal nunca sofreu preconceito dos moradores de Rodeiro, segundo conta“Somos muito respeitadosA gente é tão normal, não faz nada de diferenteNunca fui em parada gay, não levanto bandeira”, explica.

Todo mundo na cidade conhece José Duarte de Faria, de 51Cinderela — é assim que o chamam“Foram os meninos que botaram esse apelido”, sorri, mostrando os dentes e cobrindo os olhos delicadamente, com as pontas dos dedos de unhas longasGari da prefeitura, José sai recolhendo garrafas plásticas, latas de alumínio e outros materiais recicláveisTudo fica espalhado pelo quintal, até o rapaz do ferro-velho vir buscarDentro da casa minúscula, de tijolos nus, são outros os materiais espalhados sobre um armário: esmaltes, perfumes, batom, cremes hidratantes, colares, brincos, pulseirasEm um guarda-roupa ficam guardadas saias, vestidos, perucas.

Quando vai a bailes e festas, “saio de mulher, vou pintada”, diz JoséEle faz chapinha no cabelo crespo, preso na nuca com grampos, e diz que os moradores da cidade o respeitam“Ninguém me xinga”, afirmaPorém, o decorador Fábio diz que “José Cinderela” paga por não ser sua “excentricidade”“TadinhoEle sofre muito preconceitoOuvi falar que, outro dia, levou uma coça na rua”, relata Fábio, e conclui: “É que ele anda de shortinho na rua, usa perucaIsso incentiva o pessoal a mexer com eleO povo tem uma cabeça muito complicadaQuanto mais você se resguardar, melhor”.