Jornal Estado de Minas

HISTÓRIA

Conheça a nobreza de Chico Rei em Ouro Preto



Ouro Preto – Outubro traz as festas de devoção a Nossa Senhora do Rosário, as danças ritmadas das guardas de congado e a evocação de um personagem mítico da antiga Vila Rica. Nascido no fim do século 17 no Congo, aprisionado com a família quando era monarca e trazido ao Rio de Janeiro, Galanga se tornou o Chico Rei de Ouro Preto, dono de mina de ouro e respeitado pela sua nobreza e generosidade.





 

Para uns, trata-se de lenda, pela falta de documentação, mas outros garantem que é pura história, pois a tradição oral manteve o nome sempre em alta e há registro de feitos importantes atribuídos a ele e outros negros, como a construção das igrejas de Santa Efigênia e de Nossa Senhora do Rosário do Alto da Cruz, no Centro Histórico de Ouro Preto.

 

Hoje (20/10), às 20h, no anexo do Museu da Inconfidência, na Praça Tiradentes, será apresentada a peça (marionetes) 'Chico Rei' pelo grupo Terno Teatro com participação do Congado de Nossa Senhora do Rosário e Santa Efigênia. Em cena, a trajetória do escravo que comprou a sua liberdade.

“No século 18, em Vila Rica, 90% da população era formada por negros. Os brancos eram comerciantes, artistas e artífices. Dessa época e dessa comunidade, temos um legado cultural muito rico”, diz a promotora cultural do Museu da Inconfidência, a historiadora Margareth Monteiro. No entanto, afirma, muitos documentos se perderam, foram extraviados ou queimados, impedindo que os especialistas pesquisem a fundo a trajetória de Chico Rei.





 

“Ele é citado apenas numa nota de rodapé no livro 'História antiga de Minas', de 1904, de Diogo de Vasconcelos. Em 1966, o romancista Agripa Vasconcelos escreveu o livro 'Chico Rei'. É fundamental, portanto, que permanentes estudos sejam feitos para  traçar, com detalhes, a trajetória de Galanga, do Congo ao Brasil”, diz Margareth.

 

Estrelada por Maurício Tizumba (ao centro), peça musical 'Galanga, Chico Rei', dirigida por João das Neves, estreou em 2011, em BH (foto: Irene de Nóbrega/divulgação/2011)

 

Tudo começou no início do século 18, no auge do Ciclo do Ouro em Minas, quando os colonizadores portugueses partiram para a África a fim de capturar os negros e fazê-los escravos nas minas, garimpos e aluviões. “Havia escassez de mão de obra na mineração e o comércio se intensificava com o Rio de Janeiro, São Paulo e Bahia. Os chamados navios negreiros transportavam famílias inteiras e tribos que viajavam no convés”, conta a historiadora.

 

Em 1739, o rei Galanga, sua mulher, a rainha Djalô, e os filhos, Muzinga e Itulo, partiram da terra natal no navio Madalena e, durante uma tempestade, “para aplacar a ira dos deuses do mar que ameaçavam afundar a embarcação”, os negros mais fracos foram lançados ao mar. Nesse grupo, estavam Djalô e a filha, Itulo. Foi assim, em clima de desespero, que Galanga e Muzinga chegaram ao Rio.



No batismo católico, Galanga ganhou o nome de Francisco e foi com ele que chegou a Ouro Preto, ao lado do filho, depois de vendidos num lote de escravos ao major Augusto, proprietário da Mina da Encardideira, no Bairro Antônio Dias. O escravo não esmoreceu, conseguiu juntar seu ouro, migalha a migalha, comprando a sua liberdade e a de Muzinga.

 

Reza a tradição oral que o metal foi juntado de forma bem criativa: Chico Rei e outros escravos escondiam o ouro em pó entre os cabelos e depois os lavavam na pia batismal da igreja, sendo acobertados pelos padres. Depois de liberto, Chico Rei, como já era aclamado devido aos gestos de solidariedade, comprou a Encardideira e ainda alforriou os amigos que vieram com ele no Madalena.

 

Segundo a lenda, Chico Rei construiu a Igreja de Santa Efigênia para cumprir promessa. Escravos traziam ouro nos cabelos e o precioso metal era vendido para custear a obra no alto da Ladeira de Santa Efigênia, em Ouro Preto (foto: Beto Novaes/EM/D.A Press)
 

Irmandade do Rosário

A vida religiosa, representada pela devoção a Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e Santa Efigênia, esteve presente na vida do ex-monarca africano em Ouro Preto. Margareth conta que, junto com outros negros, ele construiu, em 1785, a igreja dedicada às santas no Bairro Alto da Cruz. Nessa mesma época, foi criada a Irmandade de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos e de Santa Efigênia, a maior de Minas nos tempos coloniais.





 

Coroado rei no templo católico, Galanga se considerou vingado pela morte de Djalô e da filha Itulo. Até então, diz a historiadora, os negros não podiam ser enterrados nos cemitérios católicos, que ficavam dentro ou no entorno das igrejas. Esse era um direito exclusivo dos brancos. Então, o novo templo ganhou espaço para o sepultamento dos ex-cativos. “Dessa forma, eles poderiam ter o corpo repousando eternamente como um ser humano, ser um cidadão”, explica a historiadora.

A edificação da igreja permitiu ainda que os negros realizassem as suas festas, com as danças e cantos em louvor às santas protetoras. No fim do século 18, aos 72 anos, Galanga morreu em Vila Rica de hepatite, mas seu filho herdou o posto de rei do congado.

 

“A tradição é tão viva,, que é impossível que tudo isso não tenha sido verdade”, diz Margareth. Atual rei da guarda de congado de Ouro Preto, Geraldo Bonifácio de Freitas acredita piamente na trajetória de Galanga e lamenta que grande parte da documentação tenha se perdido ao longo dos anos.





 

Cena do filme 'Chico Rei',dirigido Walter Lima Jr., lançado em 1985 (foto: Embrafilme/reprodução)
 

Minas de Aluvião

Em Vila Rica – hoje Ouro Preto –, os escravos trabalhavam nas minas de ouro, no garimpo dos rios e “mundéis”. A historiadora Margareth Monteiro explica que mundéis eram depósitos localizados no pé das serras, em pontos estratégicos. Tanques recolhiam a água da chuva que descia das encostas.

 

“Quando o barro assentava, as pepitas ficavam por cima, sendo recolhidas e levadas para a casa de fundição. Um quinto do ouro ia para a coroa portuguesa”, explica.

 

Vila Rica tinha em abundância o raro ouro preto ou podre, que eram as pepitas em forma de seixos rolados, arredondadas e cobertas por uma camada espessa formada por minério de ferro, bauxita e paládio. Por isso mesmo, os olhares de cobiça do mundo se voltaram para a região que mantém um conjunto arquitetônico e monumentos que atraem visitantes de todos os cantos. Ouro de aluvião era o mais fácil de ser garimpado, ficava nas encostas dos rios ou dos mundéis. Por isso, normalmente, não eram levados pela correnteza.

LINHA DO TEMPO

Fim do século 17 – Galanga, futuro Chico Rei, nasce no Congo, onde é monarca, guerreiro e sacerdote do deus Zambi-Apungo

Início do século 18 – Portugueses formam caravanas para ir à África buscar escravos a fim de suprir a demanda de mão de obra na região das minas
Década de 1730 – Navios negreiros saem do Congo em direção ao Brasil transportando famílias inteiras e tribos. Galanga, a mulher Djalô e os filhos Muzinga e Itulo viajam no navio Madalena
1740 – Galanga e Muzinga chegam a Vila Rica, depois de vendidos como escravos no Rio de Janeiro. No Rio, o pai é batizado e recebe o nome de Francisco
1745 –Galanga compra a alforria dele e do filho. Nas festas de Nossa Senhora do Rosário, é coroado rei do congado e se torna conhecido como Chico Rei
1750/1760 – Galanga compra a Mina da Encardideira, onde trabalhou, localizada no Bairro de Antônio Dias, em Vila Rica. O local, redescoberto em 1946, é atualmente conhecido como Mina de Chico Rei
1785 – Escravos constroem a Igreja de Santa Efigênia, no Bairro Alto da Cruz, em Vila Rica, atual Ouro Preto
Fim do século 18 – Chico Rei morre de hepatite, em Vila Rica e seu filho é coroado o novo rei do congado