Jornal Estado de Minas

Crianças dividem a dura rotina nas ruas de BH com as fantasias e a esperança de vida melhor

No dia delas, com pouca expectativa de ganhar algo, se agarram a projetos de tornarem-se advogados, atores e, claro, jogadores de futebol

Arnaldo Viana
Bola faz samuel esquecer por alguns instantes a venda de balas nos sinais (abaixo): virar craque é o objetivo - Foto: Paulo filgueiras/em/d.a press


Camisetas e bermudas encardidas e bem gastasChinelos de dedo sujos de pó de asfaltoEm casa, não há computador nem TV a caboNão curtem feriadões em praias ou sítiosO que têm mesmo, e de sobra, são sonhos e a vivacidade natural da idadeE como são crianças, ninguém, em sã consciência, vem lhes dizer que muitos dos sonhos morrem como sonhos Mas não são infelizesMesmo que hoje, Dia das Crianças, tenham mais vontades do que esperança de vê-las atendidas, a infância tem o poder de torná-los o que desejam, sem nem mesmo um estalar de dedosDe repente, quase todos se transformam em Neymar e lá se vão, rua afora, correndo atrás da bola de plástico.

Entre essa ou aquela brincadeira, um direito e uma obrigação: frequentar a escolaMas, de fato, há outro dever, exigência da origem pobre: o trabalhoDe acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 2010 havia 9.539 crianças de 10 a 15 anos no trabalho informal e a serviço de pequenas e microempresas em Belo Horizonte – 151.193 no estado
Mas parece haver maisVendem de balas a panos de chão; fazem malabarismos ou limpam para-brisasTudo para não dizer que não fazem por merecer os trocados que pingam de vidraças escuras e semiabertas dos carros.

O que encanta nessas crianças é a facilidade para sorrirContar que é filho ou filha de mãe separada, que precisa levar para casa o dinheiro da conta de luz ou até do feijão é tão natural quanto dar um chute num bagaço de laranjaEsta semana, homenageadas no calendário, não tiveram aula e foram para as ruas fazer o que normalmente só fazem aos sábados e domingos, em vez de brincar: venderMas nem todos têm algo para comercializar, não diretamente.

É o caso de Marcelo(*)Nos fins de semana, o menino de 12 anos pega Aureli de Souza, de 40, e o põe dentro do ônibus que sai do Morro do Papagaio, Região Centro-Sul, rumo ao CentroDepois, carrega-o nas costas, do ponto do coletivo até a calçada da Rua Curitiba, perto do Mercado CentralAureli tem as pernas atrofiadas – resultado de paralisia infantil“Ele mora comigo, meu irmão mais velho, minha prima e minha mãe
Se eu ganho para isso? NãoÉ como se ele fosse da família.” Mas Aureli não tem casa? “Tem, mas os pais brigam muito com ele; minha mãe trata como se fosse filho.”

Marcelo e o irmão emprestado, aureli: sonho de virar ator - Foto: Juarez Rodrigues/EM/D.A. PressNo mercado, o menino não tem ideia de quanto o irmão emprestado consegue Pode ser R$ 20, R$ 30, até R$ 40 por diaDepende de como anda o humor da humanidade, que esconde a caridade quando está indignadaMas isso não preocupa o coração do pequeno, que é maior do que o mundoE uma coisa ninguém lhe pode tirar: o sorriso de menino“De manhã, tenho atividade na Casa da Acolhida (projeto assistencial de uma religiosa) De tarde, vou para a escola.”

Se de 10 garotos, oito querem ser jogadores de futebol, Marcelo é uma das exceções“Quero ser atorFiz representações na Casa da Acolhida e gosteiSou fã do Didi Mocó.” No Dia das Crianças, ele não pede bola nem bicicleta de presenteSabe, quase com certeza: não ganhará nada disso hojeMas os olhos brilhariam se surgisse a chance de aprender interpretação“Será que consigo?”, pergunta, sem muita pretensão, preparando-se para seguir a vidaÉ hora de botar o amigo nas costas e voltar para casa.

O mundo e a bola

Longe dali, a bola azul, de plástico, quebra a monotonia de uma manhã de vendas baixas no cruzamento das avenidas Silviano Brandão e Andradas, no Bairro Horto, Região Leste de BHBasta a redonda quicar no asfalto para Samuel, Gustavo, Márcio e Rafael, todos de 12 anos, moradores dos Bairros Boa Vista e Nova Vista, se esquecerem de que ainda há muitas balas para vender nas caixasNa pista, entre carros, improvisam uma peladaUm risco danadoMas quem disse que menino tem noção de perigo?

Como na maioria dos casos, eles buscam nas ruas complemento da renda familiar“Nós estudamosVendemos balas no fim de semanaMas esta semana não tem aula, então estamos aqui”, conta SamuelO discurso, na ponta da língua, não é por acaso: frequência à escola é uma exigência dos programa sociais do governo federalMas é preciso trabalhar também “Tem as coisas para comprar em casa”, acrescenta Gustavo.

Os garotos compram a caixa com 20 embalagens de bala por R$ 7Vendem cada unidade por R$ 1 no semáforo“De 10h às 15h, a gente faz até R$ 20 Teve um dia que fui para casa com R$ 25”, contabiliza MárcioOs quatro gostariam de ganhar bicicletas neste Dia das CriançasFacilitaria o transporte até o Horto“Mas eu falo por falarSei que não vou ganhar”, diz Samuel“Eu tinha uma bike, meu amigo aqui (indica Rafael) também tinhaMas uns moleques passaram aqui e roubaram.”

Sem esperar muito pela bike, o sonho naquela esquina é jogar futebol profissionalmenteMas não é unanimidadeGustavo surpreende os amigos: “Quero ser advogadoTem muita gente que precisa de ajuda”Aos demais, nem é preciso perguntarTodos são atacantes, como Messi, Neymar, Cristiano Ronaldo, Ronaldinho Gaúcho…

A bola azul quica na avenida e eles vão atrás, segurando nas mãos firmes as preciosas caixinhas de balasNinguém se atreve a contar aos meninos que um Messi, um Neymar surge a cada 10 anos entre, no mínimo, 1 milhão de candidatos a milionários no futebolE lá, naquela esquina, por mais incrível que possa parecer, foi o pretenso futuro advogado quem melhor se saiu com a redonda nos pés.

(*) Para proteger a privacidade das crianças, todos os nomes desta reportagem são fictícios