Jornal Estado de Minas

Viaduto das Almas está entregue ao esquecimento e ao silêncio de sua trágica história

Desativada, estrutura em curva conhecida como uma das mais traiçoeiras armadilhas da BR-040 foi integrada ao patrimônio da União, mas hoje se degrada em lento abandono

Arnaldo Viana
Em meio a escombros, mato e estruturas corroídas, esta obra de arte da engenharia pode desaparecer se não for transformada em patrimônio arquitetônico - Foto: Leandro Couri/EM/D.A Press
Inaugurado em 1º de fevereiro de 1957, ele não tem vida própria e, mesmo não sendo capaz de tomar decisões, começou a ganhar fama de matador em 20 de julho de 1958Naquele dia, o pequeno fazendeiro José Alves foi o primeiro a perder a vida ao tentar atravessá-lo, ao volante de uma caminhoneteO Viaduto Vila Rica, mais conhecido como Viaduto das Almas, que se tornou tristemente célebre ao produzir viúvas e órfãos em série, hoje está entregue ao esquecimento e ao abandonoNem espírito dos mortos atribuídos à sua existência ousa frequentá-lo, nem sequer nas noites claras de lua cheia.

Tem-se a impressão de que o Vila Rica, fechado ao tráfego desde 26 de setembro de 2010, apodrece mais rapidamente do que quando os pneus das carretas limavam seu asfalto e lambiam as baixas e frágeis muretas de proteçãoPercorrer seus 262 metros, hoje, só a pé ou pedalandoSomando sua extensão aos pedaços da BR-040, nas duas cabeças de pista, lacrados depois da inauguração do Viaduto Engenheiro Márcio Rocha Martins, a caminhada, a passos lentos, dura cerca de uma hora.

Eucaliptos emolduram o passeio de quem ousa desafiar seu silêncio nos dias úteisNos fins de semana, bando de jovens leva a algazarra ao viadutoOs 30 metros de altura são propícios à prática de rapelO vento que desce das montanhas raramente dá uma trégua às folhagensA natureza começa a tomar conta do espaço que estava emprestado ao homemA chuva deposita terra, folhas e pedregulhos sobre o asfalto e o piso do viaduto.

A única lembrança de que ali passavam milhares de veículos por dia, além da estrutura de concreto, é um pedaço de mola deixado por caminhão numa das temidas descidas rumo à estreita pista do Vila Rica
Tão estreita que é difícil imaginar que por ali cruzavam-se carretas de 30 toneladas e ônibus com até 50 passageirosImpossível não pensar em tragédias, como a que levou a atriz Zélia Marinho e mais 13 pessoas, em 1967, e o que tirou a vida, dois anos depois, do cantor Mário Albertini e mais 29Zélia e Mário eram estrelas da TV Itacolomi.

O vento, único a interromper o silêncio, derruba um eucalipto magro sobre a pistaUm recado para lembrar que ali, velocidade e força agora é só com eleAs quaresmeiras, floridas entre as árvores, amenizam o clima lúgubreE dá medo percorrer, mesmo a pé, os maltratados e corroídos 262 metros de concretoNo que sobrou das muretas, as provas do improviso: fios de arame e pedaços de madeira ajudavam a segurá-las naquele tráfego infernal.

O que não era visível sob as rodas de pelo menos 20 mil veículos diários torna-se claro na encurvada solidão de concretoNo meio da pista, uma fissura de lado a ladoO Viaduto das Almas estava realmente condenadoSe não estivesse interditado, a conta dos mortos certamente subiria
Nos 53 anos do elevado, o Estado de Minas contou as histórias de 75 mortosForam quase 200, na estimativa da Associação Brasileira dos CaminhoneirosA Polícia Rodoviária Federal e o Dnit não tinham, na época, estatísticas sobre o número de vítimas de acidentes no viaduto.

Sob a estrutura macabra, o Córrego das Almas, do qual tiraram o nome para apelidar o Vila Rica, corre límpido e sem culpaSuas parcas águas já não precisam mais lavar o sangue das tragédiasA não ser que o novo viaduto seja também sufocado e se transforme em matadorO Viaduto Vila Rica, que não suscita nenhuma boa lembrança, saiu das mãos do DnitEstá, agora, integrado ao conjunto do patrimônio arquitetônico da UniãoNinguém sabe o que será feito dele

Obra de arte inaugurada com orgulho

O Viaduto Vila Rica, ou Viaduto das Almas, nasceu na BR-3, batizada de 040 em 1964Está no km 592 da rodovia, entre os municípios de Itabirito e Congonhas, na Região CentralGanhou fama de traiçoeiro em uma estrada que teve seu traçado perigoso cantado até em festival da canção, na voz de Tony TornadoE foi batizado em 1º de fevereiro de 1957 com muita pompa pelo presidente Juscelino Kubitscheck (1902-1976) e o governador José Francisco Bias Fortes (1891-1971)Os dois percorreram os 262 metros do elevado em um carro luxuosoJK não escondia o orgulhoEstava entregando à nação uma grande passagem para o progresso do Brasil

A inauguração ganhou as páginas dos jornais e os microfones das emissoras de rádio do país, como contou o repórter Paulo Henrique Lobato no caderno especial publicado pelo Estado de Minas na data comemorativa dos 53 Vila RicaA imprensa internacional também abriu espaço, não para o evento, mas para a obraA estrutura de concreto em curva, destacando-se na paisagem, chamou a atenção de arquitetos estrangeirosA admiração não significava aprovação para o uso do viaduto, ainda considerado um atrativo, como disse o arquiteto Márcio Damázio Trindade ao caderno especial.

Em1982, a BR-040 ganhou pista dupla em trechos movimentados, mas os viadutos continuaram estreitos e a carnificina não parouParentes de pessoas que perderam a vida em tragédias queriam apelidá-lo de Viaduto da MorteMas o que ficou e marcou foi Viaduto das AlmasNão pelos mortos, mas para lembrar o curso de águas claras que corre sob a estrutura: o Córrego das AlmasNão houve como não surgir uma história macabra sobre a passagem de nove metros de largura, construída em curva, que começou com o peso de menos de 1 mil veículos por dia, quando as carretas não eram tão grandes, e chegou a suportar os quase 20 mil automóveis que o atravessavam diariamente poucos antes da aposentadoria.

Matador ou não, o Viaduto das Almas, um dos orgulhos do currículo JK, é, sem dúvida, uma obra de arte abandonada, corroída, que a história da arquitetura pode perder se a União não assumi- lo como patrimônioAté mesmo o Córrego da Almas, incrivelmente limpo, corre risco com a ocupação de áreas no entornoUma das cabeças de pista (trecho de cerca de 800 metros da antiga estrada) já tem outro uso: é estacionamento de caçambas transportadoras de minério