Jornal Estado de Minas

Saiba por que a mulher que xingou criança da "preta horrorosa" responderá por injúria

Mulher acusada de atitude racista contra menina de 4 anos prestou depoimento e negou ter cometido qualquer ofensa. Professora que testemunhou agressão será ouvida amanhã

Flávia Ayer Guilherme Paranaiba
Durante o depopimento a suspeita se referiu a garoto como "moreninha" - Foto: Leonardo Curi/EM DA Press
Depois de um dia inteiro de depoimentos sobre a denúncia de racismo contra uma criança de quatro anos numa escola de Contagem, a Polícia Civil (PC) deverá indiciar Maria Pereira Campos da Silva, de 54 anos, acusada de xingar a menina de “preta horrorosa e feia”, por crime mais brando, o de injúria qualificadaA mulher foi ouvida ontem, na 4º Delegacia de Polícia de Contagem, e negou ter menosprezado a garotaApesar de acreditar na culpa de Maria, o delegado Juarez Gomes afirma que não há evidências que o leve a enquadrar o caso como racismo, já que a pequena Dnão teria sido barrada ou impedida de fazer algo por causa de sua corEsse não é o entendimento dos advogados da vítima, integrantes do movimento SOS Racismo, que insistem que o episódio extrapola em muito meras ofensas.

Em 10 de julho, a criança teria sido xingada por Maria, avó de outro estudante, descontente de o neto dançar quadrilha com uma “negra, feia e horrorosa”A professora Denise Cristina Aragão, de 34, pediu demissão e denunciou o caso aos pais da meninaAlém da acusada, a PC ouviu ontem depoimentos da professora, da mãe da criança, a atendente de telemarketing Fátima Adriana Viana da Silva de Souza, de 41, e da diretora do Centro de Educação Infantil Emília, Joana Reis BelvinoA polícia também intimou outra testemunha, a professora Mirlene Alves de Oliveira, de 36, que deverá ser ouvida amanhã, às 10h40, e vai pedir ajuda do conselho tutelar e de órgãos de proteção à infância e à juventude para ouvir a vítima.

“Até agora, podemos concluir que ela não foi preterida ou barrada em algum ambiente em razão de sua corOs indícios nos mostram que a autora ofendeu a menina, caracterizando injúria com agravante de cor ou raça, em que a pena varia de um a três anos de reclusão e o pagamento de multa”, diz o substituto da 4ª Delegacia de Polícia de ContagemNo crime de racismo, a pena seria de três a cinco anos de reclusãoDurante mais de uma hora de depoimento, a acusada negou ter cometido qualquer ofensa à criança, a quem, diante da polícia, se referiu como “moreninha”, segundo o delegado
“As declarações da suspeita não ajudaram em nada e foram típicas de alguém que comete um ato mas não assume e divaga muito no depoimento”, afirma Gomes.

Sem advogado, Maria chegou sozinha à delegacia, ficou irritada com a presença da imprensa e negava a todo momento ser ela a acusada de ter xingado a criançaÀ polícia, disse que era a vítima“Segundo ela, a professora estava usando a situação para tentar prejudicar a escola”, diz o delegadoA diretora da escola, Joana Belvino, estava acompanhada do advogado e também não quis comentar o assuntoDe acordo com Gomes, Joana disse ter tomado conhecimento da denúncia de racismo quando foi procurada por jornalistas“A diretora falou que não sabia que o desentendimento com a professora teria esse pano de fundoPara a polícia, a situação de ter denunciado ou não o caso é irrelevante, pois ela não tem por lei a obrigação de notificar injúria”, afirma Gomes.

Uma equipe de advogados da Organização Não Governamental (ONG) SOS Racismo acompanhou os depoimentos e garante que o caso pode ser interpretado como racismo“Durante a festa junina, há indícios de que a avó tentou impedir seu neto de dançar com uma garota negra se referindo à raça em geral e não injuriando uma pessoaDessa forma, no momento em que ela não queria que uma negra tivesse o convívio social em uma festa de escola, se caracteriza o racismo”, diz o advogado Amadeus Carlos PimentaIndependente da conclusão ou do que for relatado no inquérito, o advogado informou que nos próximos dias vai entrar com uma ação penal por racismo além de mover também uma ação cível por danos morais contra a agressora pelas ofensas e contra a diretora pela conivência.

O QUE DIZ A LEI

O racismo é caracterizado pela Lei Federal nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989 que, em linhas gerais, diz que fica configurado o crime quando há impedimento ou negação de acesso, emprego, matrícula, hospedagem, entre outros, por conta de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional
Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito por conta dos mesmo fatores, da forma geral, também é considerado racismoSegundo advogados, nesse caso a pena pode chegar a nove anos de prisão de acordo com as combinações de artigosA injúria é tipificada pelo artigo 140 do Código Penal e a pena varia de um a seis meses de detenção ou multa em caso de ofensa da dignidade ou do decoro de uma pessoaTambém há o agravante da violência, que eleva a pena para a variação entre três meses e um ano de detenção, além da multa e punição pela violênciaO último agravante diz respeito à injúria com elementos de raça, cor, etnia, religião, origem ou a condição de pessoa idosa ou portadora de deficiênciaNesse caso, a pena varia de um a três anos de reclusão, além da multa.

PALAVRA DE ESPECIALISTA: GUSTAVO FREIRE, ADVOGADO ESPECIALISTA EM DIREITO PENAL

Criança sofreu desqualificação

“A postura do delegado ao considerar injúria e não racismo está corretíssimaO racismo objetiva principalmente a segregação racial e não houve nenhuma forma de segregação racial nesse episódioNo caso, foram comentários que atingiram a honra subjetiva daquela pessoa (a criança negra), mas não com o objetivo de separar raças, grupos étnicos ou religiososA injúria é toda forma de desqualificação de uma pessoaE no caso dessa criança a desqualificação houve por meio da cor, mas não houve o objetivo de separar raças.”

Emoção no depoimento dos pais e professora

O depoimento da professora Mirlene Alves de Oliveira, 36 anos, será peça-chave para esclarecer se as agressões verbais dirigidas à pequena D., de 4 anos, poderão ou não ser qualificadas como racismoA funcionária da escola particular de Contagem será ouvida amanhã pela Polícia Civil (PC), que afirma só poder configurar o caso como racismo se ficar comprovado que a criança tenha sido impedida de participar de algo em razão da corA professora, que estava presente na quadrilha, conta que durante a festa junina a acusada reclamou ao ver seu neto dançando com uma garota negra“Imaginávamos que algo poderia acontecer pelo histórico de comentários delaHouve apenas um comentário dela comigo e com a diretora, mas o pior foi na terça-feira, quando entrou gritando na escola”, diz Mirlene.

Durante a manhã de ontem, a emoção marcou o depoimento da professora e dos pais da pequena D., que ainda não conseguiu se recuperar do trauma“Ela chora muito, sempre diz que ninguém gosta dela e que está passando malSempre repete que não fez nada, achando que tem alguma culpaAlgumas palavras ditas pela avó do coleguinha estão na cabeça delaO mais triste é que ela estava começando a entender sua identidade negraAgora, acha que essas características são ruins”, diz a mãeQuestionado sobre o drama vivido pela filha, o pai, Ailton Cesar de Souza, perdeu o controle e começou a chorar, sem conseguir dizer uma palavra para expressar a indignação por tudo que a criança passou.

A professora Denise Cristina Aragão, de 34, também depôs à polícia e disse que os alunos estavam assistindo a um filme na sala de aula, quando a acusada Maria Pereira Campos da Silva, de 54, e o neto chegaram“No portão, ela já começou a ofender a garota perguntando porque eu tinha deixado ela dançar com seu neto”, diz a professora“Imediatamente a adverti, falando que a criança estava na salaEla não se importou, me mandou calar a boca, pois meu salário era para dar aulas.” Segundo Denise, só depois que Maria Pereira parou de xingar a menina, ela voltou a se aproximar, chorando muito“Ela disse que não acreditava no motivo do meu choro”, completa DeniseA educadora diz ter conversado com a diretora e como viu que nenhuma atitude seria tomada, pediu demissão“A diretora me disse que qualquer escola teria preconceito e se ela fosse reagir contra cada caso não teria alunos”, completa