Jornal Estado de Minas

Holandesa que vive em BH acolhe menores há 20 anos e ensina prevenção contra Aids

Jefferson da Fonseca Coutinho

- Foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press

No início dos anos 1990, no Bairro Lagoinha, Região Noroeste de Belo Horizonte, na esquina das ruas Além Paraíba e Adalberto Ferraz, a presença constante de crianças e adolescentes largados, sujos, delinquentes, chamava a atenção de moradores e trabalhadores do entorno da Igreja Nossa Senhora da ConceiçãoPara a maioria dos cristãos do quarteirão, uma deformidade social que precisava ser combatidaPara grande parte da vizinhança, um desrespeito que atrapalhava o comércio, enfeava endereços e assombrava a pazNa ponta da discórdia, uma médica estrangeira, loura, de olhos azuis e coração enorme: Irene Adams, holandesa, imunologista, voluntária, decidida a impedir o avanço das contaminações pelo vírus da Aids entre os meninos de ruaNa casa de apoio, atraída pelo pão e pelo cobertor para os tempos de fome e frio, a meninada acabava recebendo também o carinho da doutora, de plantão, disposta a ensinar o amanhãEm 2012, passados mais de 20 anos, a clínica Ação Multiprofissional com Meninos em Risco (Ammor) já acolheu 2.509 menores, dos quais 28 soropositivosJuntos, duas gerações somam os “filhos” de Irene, viúva, mãe e avó, que, longe da família – na Europa e nos Estados Unidos –, vive de lançar luz ao futuro de quem não conhece esperança.

Doutora Irene Adams, de 72 anos e sotaque carregado, fala da afilhada Marlene, de 40, com a satisfação de quem acompanha a realização dos filhos: “Ela esteve comigo em 1989, quando nos conhecemosHoje, ela tem marido, filhos e acabou de ser avóAté hoje vem fazer ‘check-up’ comigo”Diz-se feliz pela amizade fortalecida com a menina saudável e crescida, retirada das ruas Sorriso aberto, o semblante é de quem aprendeu a sorrir com a alegria do outro
No apartamento modesto, bem próximo à tumultuada Avenida Cristiano Machado, pilhas de papéis sobre mesas e bancadas da sala“Não repare, sou uma workaholic”, faz menção à condição permanente de pouco sono e muito trabalho

Elegante, de roupa social econômica – calça, camisa e paletó –, tem nos pés tênis surradoEspecialista em imunologia, com passagem por diversos países, não é de falar de siCom relógio de plástico no pulso, mostra-se simples, atenta apenas ao necessário para levar adiante uma vida missionária“Não gasto com relógio caro e não tenho nenhum tipo de joiaO pouco me bastaSou uma pessoa frugal”, considera-seO carinho pelo Brasil aumentou na década de 1970, em viagem com o marido, funcionário de multinacional, para o Rio de JaneiroNa década seguinte, no surgimento da Aids, já era médica em Belo Horizonte
Tinha interesse intelectual pela doença e amor arrebatador pelas crianças de rua, segundo ela, “alvo pontecial para a proliferação do vírus”.

“Como médica, trabalhando há tempos com doenças autoimunes, veio a Aids, uma doença relativamente novaEu conseguia lidar bem com pacientes com câncer nessa situação potencialmente fatal, mas, com a Aids, descobri que era diferente”, conta, que também é oncologistaIrene revela que foi tocada pelo preconceito e por toda a culpa que chegava junto do vírus HIVPara a doutora, a pessoa com Aids precisava de muito mais que um médico Emocionada, faz voltar os ponteiros da própria história: “Fui uma criança muito doenteLembro-me aos 4 anos quando entrava num consultório, sofrendo, e vinha a pessoa de branco… só a presença dela já me tranquilizavaFoi quando, pequena, decidi ser médica e ajudar os outros”

O início

Para a doutora, a Aids trouxe a necessidade de um novo profissional da saúde, bom ouvinte, atento às particularidades vindas no rastro do novo mal, que dava o que falar em todo o mundoEm 30 de abril de 1987, durante comemoração do Dia da Rainha, feriado importante na Holanda, Irene conheceu um casal de voluntários que estava no Brasil trabalhando com menores de ruaDa conversa sobre Aids e crianças abandonadas, a pergunta: “O que aconteceria se uma criança de rua fosse contaminada?” Foi o suficiente para que a holandesa abraçasse a causa e decidisse fincar raízes na capital mineira.

No início, entre os principais aliados, a Arquidiocese de Belo Horizonte por meio da Pastoral do Menor, e o colega imunologista da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Dirceu Bartolomeu Greco“Foi quando conseguimos verba para um projeto de prevenção entre os meninos de ruaNessa época, a pastoral ganhou espaço no porão da Igreja Nossa Senhora da Conceição e os meninos compareciam por causa da casa de apoio”, dizDas descobertas na nova missão, Irene destaca “a pessoa dentro da pessoa”A médica missionária considera que mais que ajudar, é preciso acreditar nos desfavorecidos “É preciso entender que dentro de um menor infrator tem uma pessoa que precisa de ajuda”, diz.

“Ele não quer muitoQuer ser tratado como pessoaMuitos garotos voltavam com frequência para o ‘check-up’ para o contato com a clínica, apenas para que pudessem ser olhados sem medoPara se sentirem respeitadosPense bem: já não têm família e ainda vivem sob o olhar do medo e da discriminaçãoQue futuro poderiam ter? Não é um trabalho de atendimento médico apenasÉ açãoÉ resgate”, explica“A Aids era de menosA doença, em média, depois da contaminação, leva 10 anos para os primeiros sintomasA maioria das crianças de rua não tinha essa perspectiva de vidaImagine: todo mundo dizendo ‘você não presta’, ‘você é criminoso’O menino passa a acreditar nisso, porque tem baixa autoestima”, ressalta.

Irene conta que hoje 90% das crianças acolhidas pela Ammor vieram de abrigos Felicidade e orgulho se confundem no azul iluminado dos olhosPara a doutora, impossível não ficar feliz com o resultado da força-tarefa pela proteção dos pequenos carentes“Hoje temos o Estatuto da Criança e do Adolescente e o Conselho Tutelar, que movimentam toda uma rede de proteção ao menorTenho muito orgulho de morar em Belo Horizonte, de ser cidadã honorária da cidadeSinto-me parte dessa redeSeria impossível realizar sozinho algo dessa natureza”, consideraNo entanto, para a missionária, os avanços ainda estão longe de eliminar os problemas

“A grande maioria dos menores vem de famílias esfaceladasEstão nos abrigos porque as famílias continuam desestruturadas, porque não há referências de uma vida diferentePorque falta amor, respeitoTemos uma equipe que vai aos abrigos e trabalham dinâmicas com educadores e educandos do lugarUma pergunta muito importante na qual eles aprendem a pensar é ‘quem sou eu?’É preciso que eles se reconheçam e ganhem confiança, acreditem num novo caminho”, sugereIrene diz que a certeza de que seu trabalho está na direção correta vem do retorno de seus afilhados“Muitos meninos que passaram pela clínica, voltamNão para pedir dinheiro, mas em busca de um olhar de carinho.”

Família

Os filhos de sangue estão longeUm nos EUA, onde atua como representante comercialA outra, engenheira, faz carreira na BélgicaNão são eles ou os netos a maior preocupação da doutoraSão os filhos “adotados”, invisíveis, os que tiram seu sonoEntre 1992 e 1996, a imunologista trouxe recursos de organizações holandesas para as crianças de Belo Horizonte“O apoio foi interrompido porque eles disseram que o Brasil é um país rico, que aqui o problema é a distribuição de renda”, conta Irene Adams critica a falta de tradição do brasileiro em ser voluntário Lamenta a falta do hábito de doações regulares aos projetos sociais que ajudam a combater as diferenças

“Na Holanda, nos Eua, isso é muito diferenteMeu sonho é de uma nova consciência que dê sustentabilidade aos trabalhos sociaisLutar pela cidadania dos outros é ganhar a minha cidadaniaAqui, eu não tenho direito ao voto, mas vocês precisam votar muito certoPor vocês e por mim”, provocaSolitária, imersa em mundaréu de compromissos, lazer só tarde da noite, com os filmes Amor impossível, de Lasse Hallström, e Para Roma, com amor, de Woody Allen, anotados na agendaPara encerrar a conversa, o desejo de quem aprendeu amar as crianças de Belo Horizonte, de graça: “Já comprei meu abrigo no Cemitério do BonfimQuero ser enterrada na cidade onde aprendi a viver”, sorri.


SAIBA MAIS: PROJETO AMMOR

O foco do projeto está no desenvolvimento humano de excluídosAs pessoas são motivadas a procurar atendimento médico pela informação e prevençãoCom isso, o paciente tem a autoestima resgatada, a cidadania e a convivência com a famíliaEm 2006, com o fechamento da Clínica Nossa Senhora da Conceição (CNSC) –projeto da Arquidiocese de Belo Horizonte que acolhia pacientes com câncer terminal e portadores do vírus HIV – serviços sociais importantes ficaram sem tetoA imunologista Irene Adams resolveu integrá-los à Clínica AmmorAssim, o projeto integra ações como o Comvidha, de assessoria jurídica; o Papel e Cia, de capacitação por meio de oficinas de artes; a Academia de Ginástica Movimento Saúde, a Cooperativa Grupo Solidário, além do atendimento às crianças e adolescentes em risco socialInformações: (31) 3444-3877 e 9503-8277.