Jornal Estado de Minas

Restauração limpa paredes da Igreja Matriz São José e revela relíquias

Limpeza deixa à mostra pinturas feitas pelo alemão Wilhelm Schumacher há cem anos

Gustavo Werneck

Marcas de pó de asfalto começam a desaparecer das paredes da igreja; obra de recuperação está estimada em R$ 1,6 milhão e deve durar até o Natal de 2012 - Foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press

O dourado cobre os capitéis no topo das colunas da nave central e as vestes dos anjos recuperam as coresO azul da cúpula se torna mais vivo, enquanto vão sumindo as marcas do pó de asfalto que aumentam a escuridão do templo católico e camuflam a beleza originalA Igreja Matriz São José, na Avenida Afonso Pena, no Centro de Belo Horizonte, passa por uma restauração histórica: neste ano, em que comemoram o centenário das pinturas parietais internas, de autoria do alemão Wilhelm Schumacher, os padres redentoristas comandam a mais completa obra de recuperação dos elementos artísticos da construção neogótica que recebe, por dia, cerca de 1,5 mil pessoas, e nos fins de semana, até 6 milOs serviços começaram há pouco mais de um mês e deverão terminar no fim de 2013“No Natal do ano que vem, estaremos com tudo pronto”, preveem o vigário paroquial Flávio Leonardo Santos Campos e o pároco José do Carmo Zambom, que estimam um gasto de R$ 1,6 milhão só com as pinturas

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As pinturas parietais – feitas diretamente nas paredes e teto, sobre o reboco, grande moda em BH no início do século 20 – consumiram dois anos de trabalho, 1911 e 1912“Schumacher teria atuado sozinho, e só depois recebido a ajuda de um italiano chamado Goretti”, diz o padre Flávio LeonardoConsiderado o maior conjunto desse tipo de ornamentos em igrejas da capital, o interior da matriz reúne uma variação de motivos do primeiro e segundo testamentos e até alguns pagãosEstão lá a Santíssima Trindade, figuras de 28 santos, de um lado os homens e do outro as mulheres; o patrono da matriz no alto do arco-cruzeiro, com a inscrição “Rogai por nós”; os evangelistas; painéis mostrando José do Egito, que não tem nada a ver com o pai adotivo de Jesus, sendo vendido pelos irmãos e depois em sua volta triunfal; Nossa Senhora ao lado dos apóstolos; e os símbolos do zodíaco, que, para os religiosos, representam constelaçõesQuem olha atentamente cada centímetro coberto pelas pinturas pode encontrar algumas envoltas em mistérios que desafiam os historiadores e teólogos, a exemplo das três lebres perto da porta lateral

Problemas

Responsável pela obra, a especialista Maria Regina Ramos, do Grupo Oficina de Restauro, diz que, em 100 anos, foram muitas as agressões ao interior da igreja, como infiltrações, perdas da policromia, trincas, excrementos de insetos, arranhões e abrasões causadas pelo uso contínuo

“O grande problema continua sendo o pó de asfalto, que escurece o interior da matriz, um espaço já não muito claroCom a restauração, o efeito será outro”, adiantaOriginalmente, a fachada e as laterais, segundo Maria Regina, tinham um tom cerâmica e vermelho óxido de ferro, mais próximo do tijolo do convento que ali existe, e não bege como atualmente“As prospecções mostram essa tonalidade, bem mais bonita que a de hoje.”

Admiradora número um do templo e da iconografia, Maria Regina destaca a importância da igreja para a Região Central da cidade“É um lugar onde todos param tanto para rezar como descansarA escadaria de frente para a Avenida Afonso Pena está sempre cheia, tem gente de todos os cantos conversando, lanchando, enfim, convivendo”, diz a restauradora“A matriz imita, nas pinturas, as igrejas góticas europeias, embora hoje não se veja nelas esta arte, que se perdeu por estar sobre pedras, que é muito porosa e traz umidade, fazendo com que desapareça com o tempo”, diz Maria Regina

Os padres explicam que os recursos vão sair dos cofres da igreja, fruto de doações, dízimos e outras fontesE eles esperam mais“Vamos ficar muito agradecidos com a colaboração de todos, pode ser de empresas, leis de incentivos e outros fundos”, afirma Flávio Leonardo, lembrando que ainda estão por vir, fora do orçamento, as obras na cobertura, parte elétrica e pintura externa
No ano passado, o projeto contemplou o batistério, local por onde o artista alemão começou o seu trabalho e assinou o seu nome, os quadros da via sacra, a mesa do altar e o coro

Andaimes


 
Instalados nas laterais da igreja, na parte da frente, os andaimes ainda não perturbam as celebrações religiosasNo ano que vem, no entanto, vai atrapalhar a vida das noivas, pois estarão montadas, na nave central, 14 colunas de andaimesPor isso mesmo, diz padre Flávio Leonardo, há muitas vagas na agenda para 2013“Mas para este ano está tudo cheio”, revelaMesmo com as estruturas e os problemas visíveis, o interior da Igreja São José, num tom âmbar, mostra seu esplendor, favorecido ainda pelos 79 vitrais, que também serão restaurados

Equipe de restauradores identificou problemas como infiltrações, trincas e arranhões - Foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press

A equipe que trabalha na obra está entusiasmadaEnquanto vai retirando o tom oxidado do capitel da coluna, o auxiliar de restauração Fábio Martins Canuto, de 18 anos, que fez o curso do Valor Social/Museu de Artes e Ofícios (MAO), conta que esta é uma ótima oportunidade para aprender maisJá a restauradora Patrícia Tavares, de 34, está mais aliviada “Trabalhei aqui no batistério e no coro e ficava preocupada com a situação, pois via a necessidade urgente de se completar o serviço”, explica a especialista, que tem a companhia nessa empreitada sob a direção de Maria Regina, Arley Martins de Souza, Marçal José Rosa Roberto, Luiz Eustáquio Rosa, Mário Lúcio da Silva e Maico Ferreira GomesDentro de dois meses a equipe vai passar de oito para 12 trabalhadores e no ano que vem estará com 40 para dar conta de 1,2 mil metros quadrados de pinturas parietais.

O centenário das pinturas parietais traz à tona a história da igreja, cuja paróquia foi criada em 1900, quando Belo Horizonte ainda pertencia à arquidiocese de Mariana “Naquele ano, o bispo de Mariana, dom Silvério Gomes Pimenta, entregou a igreja aos missionários redentoristas”, diz o padre ZambomAo lado, padre Flávio Leonardo mostra o retrato do alemão Schumacher, que estudou belas-artes em Munique, no seu país natal, e em Bolonha, na ItáliaNo livro Verdades históricas e pré-históricas de Belo Horizonte, Raul Tassini escreveu que a São José, pelo seu patrimônio artístico, “empalidece os demais templos de BH”Já os padres, em 1912, ficaram felizes ao ver terminado o serviço e também pelo adeus ao alemão, visto como um homem nervoso e temperamental


LINHA DO TEMPO
Conheça a história da Igreja São José
1900 – Em 27 de janeiro, é criada a Paróquia São José, por ato do bispo de Mariana, dom Silvério Gomes Pimenta
1901 – Em 21 de agosto, o projeto arquitetônico é aprovado
1902 – Em 20 de abril, é feito o lançamento da pedra fundamental
1904 – em 19 de março, dia de São José, templo é liberado para celebrações
1907 – Término da obra interna da igreja
1910 – Conclusão das torres e da pintura do batistério
1911 –Instalação do relógio e sino
1911/1912 – É feita a pintura interna da igreja pelo artista alemão Wilhelm (Guilherme, em português) Schumacher



O mistério das lebres

- Foto: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press A Igreja São José é a única do país com um símbolo que intriga pesquisadores e atiça a curiosidade dos fiéisTrata-se da pintura de três lebres unidas por uma das orelhas e formando, entre elas, um triânguloO quadro fica do lado direito de quem entra no templo, sobre o painel de José do Egito sendo vendido pelos irmãos“É um mistério que ninguém conseguiu desvendar até hoje”, diz o padre Flávio Leonardo, explicando que já mencionaram, embora sem comprovação, que a origem estaria no Oriente, nos primórdios do budismo e até na estampa de um tecido de seda que chegara na época à capitalEm 1989, levado pelo gestor cultural Afonso Borges, o escritor Paulo Coelho esteve na Igreja São José e se encantou com as pinturas, ficou muito tempo diante das lebres e identificou vários sinais cabalísticos no interior do templo “São José é o santo de devoção do escritor e ele me pediu que fotografasse todo o interior da igreja e mandasse para ele”, recorda-se Borges


Passo a passo
A restauração da Igreja São José vai demandar um ano e oito meses de trabalhoVeja as etapas do trabalho:
1) Inicialmente, são feitos testes nas pinturas com solventes, prática que impede uso de produtos inadequados sobre as obrasDepois é retirada a poeira com espanador, aspirador e trinchas e, posteriormente, executa-se a limpeza com solventes
2) Fixação das pinturas originais que estão descolando, com uso de adesivos específicos de restauração
3) Consolidação do reboco e das trincas
4) Aplicação de fungicidas, pois as infiltrações provocam mofo
5) Aplicação de massa e nivelamento das perdas da pintura
6) Reintegração cromática ou reconstituição das perdas da pintura, preservando-se o originalFinalmente, aplica-se o verniz de proteção

Fonte: Maria Regina Ramos/Grupo Oficina de Restauro