Jornal Estado de Minas

Comunidade dos Arturos comemora em Contagem o 124º aniversário da Lei Áurea

Eles encenaram o cativeiro e a libertação dos escravos com celebrações e manifestações folclóricas-religiosas

Tiago de Holanda

- Foto: Gladyston Rodrigues/EM/D.A Press

Descalços e sem camisa, os homens manejam enxadas, foices e facõesAs mulheres carregam na cabeça cestos com frutasMais tarde, deitados no chão da senzala, os escravos ouvem a novidade que um deles canta: “‘Tava dormindo, sinhainha me chamou: ‘Acorda, negro! Cativeiro já acabou’”É quando todos se levantam, jogam para o alto os grãos de milho e feijão, batem os tambores e gritam: “Viva!”

A encenação ocorreu na manhã de ontem na Festa da Abolição realizada pela tradicional Comunidade Negra dos Arturos, em Contagem, na Grande BHIniciada sábado, a festa marcou o 124° aniversário da Lei Áurea, que declarou extinta a escravidão no Brasil e foi assinada pela princesa Izabel em 13 de maio de 1888.

“A libertação do escravo não foi um favor, foi uma conquista penosaQueremos lembrar a luta e a resistência do negro no país”, explicou Marcos Eustáquio dos Santos, de 39 anos, técnico em manutenção de eletrodomésticos e presidente da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário de ContagemEssa é a denominação oficial da Comunidade dos Arturos, que ocupa 11,5 hectares do Bairro Jardim Vera CruzTodos parentes, os 429 moradores se chamam arturos em homenagem ao antepassado Arthur Camilo Silvério, herdeiro do terreno dos pais, ex-escravos.

Na Festa da Abolição, a comunidade exibe algumas das tradições que vem sendo preservadas há geraçõesNa noite de sábado, a programação começou com um cortejo de guardas até a Igreja Matriz de Nossa Senhora do RosárioNa congada, folguedo que mistura elementos da religião católica a alguns de matriz africana, a guarda é um reinado fictício, formado por reis, rainhas e suas cortes.

LIBERDADE


Por volta das 9h de ontem, as duas guardas dos Arturos voltaram a andar até a matrizO trajeto foi animado por danças e cantos, acompanhados por tambores e chocalhos

Por outro caminho, também chegavam à igreja as guardas convidadas, algumas de Contagem e outras vindas de cidades como Brumadinho, Ouro Preto e Prudente de Moraes.

Na entrada do pátio da Matriz, os grupos reverenciavam dois mastrosNo topo de um deles, a bandeira tinha a inscrição “Liberdade — 13 de maio” em um lado e, no outro, a imagem da princesa IzabelEm seguida, surgiu um grupo de escravos“No tempo do cativeiro, quando o senhor me batia, eu gritava para Nossa Senhora — ai, meu Deus! As pancada em mim não doía”, cantou uma das escravas, a voz chorosaDepois de outros cantos de lamento, uma princesa Izabel de mentirinha leu a Lei Imperial 3.353, a Lei Áurea.

Após festejar a boa nova, os escravos pararam diante da porta fechada da Matriz“No tempo do cativeiro, era branco que mandavaQuando branco ia à missa, negro cá fora ficava”, canta um dos integrantes das guardasOutro pede, também cantando: “Senhor padre, abra a porta, porque negro quer entrarQuero ouvir a santa missa que o santo padre vai celebrar”.

MISSA CONGA


As portas se abriram e a igreja ficou lotada durante a Missa Conga“Essa celebração é um grande grito de liberdade
Somos descendentes dessa cultura e precisamos acolhê-la”, disse o padre Antônio GouveiaConcluída a cerimônia, todas as guardas seguiram para os ArturosA programação prosseguiu até a noite, com celebrações e outra procissão.

No público que acompanhavam a festa, havia uma turma de graduandos de pedagogia da Universidade Federal Fluminense, do Rio de Janeiro“Ouvimos muito falar nessa festa e viemos conhecerPara compreender o que somos hoje, precisamos estudar a influência da cultura negra em nosso país”, contou o estudante Carlos de Aguiar, de 29 anos.