Jornal Estado de Minas

Grande BH registra três crimes sexuais contra crianças em 14 horas

Proporção de pelo menos um ataque do tipo por dia assume ares de epidemia

Junia Oliveira Andréa Silva
O ex-juiz Mário José Pinto da Rocha, de 65 anos, nos fundos da delegacia, e sua última vítima (abaixo, à direita): condenado a 12 anos por estupro, o réu ganhou direito de recorrer em liberdade e tempo para voltar a abusar - Foto: Jair Amaral/EM/D.A Press

Ofertas de balas, chocolates, brinquedos logo deixam para trás a aparência inocente e tentadora para assumir, diante do criminoso, o aspecto do abuso, da coerção e da violênciaA conversa mansa rapidamente se transforma e prende a vítima em uma rede de ameaças Todos os dias, pelo menos uma criança ou adolescente é vítima de crime sexual em Belo Horizonte e região metropolitana, segundo as estatísticas da políciaE, desde a noite de domingo, em apenas 14 horas três famílias da Grande BH conheceram o lado sombrio desses números: entre as 18h de anteontem e as 8h de ontem, BH e Santa Luzia registraram três casos de abuso contra crianças, um dos quais terminou de forma trágica, com a morte de uma garotinha de 11 anosOutro chamou a atenção por envolver um ex-juiz, que já havia sido condenado por crime semelhante.

De acordo com a Secretaria de Estado de Defesa Social (Seds), somente nos dois primeiros meses deste ano foram 62 ocorrências, sendo 23 contra crianças com até 11 anos e o restante contra adolescentes de 12 a 17 anosEm 2011, foram registrados 505 casos na Grande BH, número muito alto, embora inferior ao do ano anterior, quando foram constatados 798 crimesDe acordo com a Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, são considerados crimes de violência sexual estupro, assédio, favorecimento da prostituição, entre outros.

O presidente da Comissão de Assuntos Penitenciários da Ordem dos Advogados do Brasil em Minas Gerais (OAB-MG), Adilson Rocha, acredita que os dados sejam subnotificados “Na maioria das vezes, é um crime que ocorre muito no âmbito doméstico e, por isso, não ganha publicidadeO agressor consegue intimidar a vítima, por causa da proximidade”, afirmaPara o advogado, a questão ultrapassa os limites do direito: “Um cidadão que comete um crime desses é mais doente que um bandido, pois não consegue controlar seus impulsosÉ uma compulsão
Mas ele é considerado imputável, pois a doença não retira a capacidade de discernir: o autor sabe direitinho o que está fazendo e, por isso, é responsabilizado”.

Punição é exatamente o que esperam os familiares das vítimas do ex-juiz e advogado Mário José Pinto da Rocha, de 65 anos, já condenado a 12 anos de prisão por estuproEnquanto aguardava recurso em liberdade, teve tempo para cometer mais crimesEle foi preso em flagrante domingo à noite, em seu apartamento no Bairro Santa Amélia, na Região da Pampulha, depois de denúncia anônimaA equipe da Delegacia Especializada de Proteção à Criança e ao Adolescente (Depca) encontrou um menino de 11 anos escondido embaixo da cama do acusado.

Bastante assustada e muito envergonhada, a criança confirmou ter sofrido abuso sexual pouco antes da chegada do policiaisContou ainda que a situação ocorria havia algum tempo e que, a cada encontro, recebia de Mário Rocha entre R$ 10 e R$ 15No apartamento, foram recolhidos preservativos, lubrificantes, luvas, toalhas e lenço de papel usadosA delegada Andréa Aparecida Alves da Cunha Soares informou que o menino passou por exame de corpo de delito e a previsão é de que o laudo fique pronto em 30 diasA polícia sabia havia pelo menos um mês que uma criança frequentava a casa do ex-magistradoRocha foi autuado em flagrante por estupro de vulnerável e poderá responder ainda pelo crime de exploração infantil.

Livre

A primeira condenação do ex-juiz ocorreu em 17 de junho de 2011, mas o réu conseguiu o direito de responder em liberdade na fase de recursoO que foi tipificado como “crimes contra os costumes” foi, na verdade, o estupro sistemático de dois irmãos, entre outubro de 2007 e maio de 2008
Na época, os meninos tinham 9 e 10 anosDe acordo com o processo, Mário Rocha se valeu da condição de advogado para molestar as crianças, com a promessa de ajudar a mãe dos meninos, que estava presa.

O réu teve prisão temporária decretada em 18 de julho, mas foi liberado em 1º de setembro de 2008Como o crime ocorreu antes da mudança da lei, em 2009, o julgamento se baseou na antiga legislação, mais branda que a atual Agora, ele responderá por crime hediondo inafiançável

Acusação e assassinato

Além do episódio de abuso envolvendo um homem cuja profissão se baseia na defesa das leis, dois outros casos chocaram famílias ontem, na Região Metropolitana de Belo HorizonteEm um deles, o suspeito foi preso, mas liberado em seguidaNo outro, a identidade do responsável pela violência ainda é um mistério.

No Bairro Jaqueline, na Região Norte de BH, o dono e instrutor de uma escola infantil de futebol, A.M.L.R., de 55 anos, foi denunciado à Polícia Militar pela mãe de um menino de 12 anosA.C.S., de 27, disse que ficou sabendo apenas no domingo que o filho estava sendo assediado sexualmente havia pelo menos 15 diasO acusado teria perguntado ao garoto se ele “não queria ser dele” e ainda feito várias promessas caso a “oferta” fosse aceita.

O homem teria também pedido ao menor para sentar em seu colo e tentado beijá-lo“Meu filho não me contou nada, com medo de represália, mas se abriu com a minha mãeFui atrás do instrutor e o acusei de pedófiloEle apenas sorriu e disse que era para eu provarPela manhã, voltei à casa dele e chamei a PMEle assedia as crianças, chamando-as para tomar sorvete”, acusou a mulher.

A delegada Andréa da Cunha ouviu ontem a criança, a mãe e o suspeito, que prestou depoimento e foi liberado, já que não houve flagranteA Polícia Civil prometeu continuar as investigações e verificar se há outras vítimas do instrutor.

O que diz a lei

Pedofilia é toda ação que envolve desejo sexual em relação a criança ou adolescente, sem contato físico: pode se dar por meio de fotografias, vídeos ou qualquer cena pornográfica.

Quando há contato físico, passa a ser estupro, considerado crime hediondoPela Lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, qualquer contato íntimo, seja ato libidinoso ou conjunção carnal, com menores de 14 anos caracteriza estupro de vulnerável, com base no artigo 217 do Código Penal.

A pena varia de 8 a 15 anos de reclusãoPara crimes contra maiores de 14 anos, a punição é de 6 a 10 anos de prisão.

Com a reformulação do Código Penal, em 2009, acabou a caracterização de atentado violento ao pudor, ato libidinoso e de tudo que não envolva penetraçãoTodo abuso é considerado estupro.

Outra mudança é que, antes, apenas a mulher era vítima do crime definido como estuproAgora, o homem também pode ser vítima se coagido a cometer um ato de natureza sexual.
Abuso e morte Chegaram ontem ao fim, de forma trágica, as buscas pela menina Bianca dos Santos Faria, de 11 anos, que saiu de casa na manhã de sábado, no Bairro Cristina, em Santa Luzia, para ir à padaria e desapareceuO corpo da criança foi encontrado em um matagal, a um quilômetro e meio de distância da casa onde ela vivia com a mãe, o padrasto e três irmãosPeritos da Polícia Civil constaram que Bianca foi estuprada e depois morta por estrangulamentoO crime teria ocorrido durante a madrugada de ontem.

A mãe da menina, a dona de casa Márcia dos Santos Fonseca, passou mal quando soube da notíciaA mulher foi levada em estado de choque para a Unidade de Pronto-Atendimento (UPA) do São Benedito“Não sabemos quem pode ter cometido uma covardia dessasTínhamos um bom relacionamento com a vizinhançaA Bianca era uma menina tranquila, estudiosaCostumava fazer companhia para uma vizinha, já de idadeNo sábado, saiu para comprar pão e disse que depois iria para a casa dessa idosa”, contou o padrasto, o balconista Carlos José da Silva, de 43Até ontem, nenhum suspeito havia sido identificado.

Palavra de especialista

Sylvia Flores, psicóloga e professora de Criminologia do Centro Universitário Newton Paiva

“Quando falamos que pedofilia é uma doença, não estamos isentando o pedófilo da responsabilidade jurídica e criminalÉ apenas uma explicação para a atitude, mas nada justifica a violência contra uma criança, uma mulher, um idosoPessoas com esses distúrbios podem ter dois iníciosUm deles é a partir da genética, que afeta mais homens que mulheresSendo uma doença, um dos tratamentos é a castração química, porque essa pessoa sente desejo e não o controlaÉ preciso acabar com todo e qualquer tipo de libido, pois o desejo sexual é o gatilho para uma ação inadequadaSe deixar o criminoso solto, ele vai continuar abusandoHá também o início por meio da violência sexualÉ o caso da pessoa que, na infância, sofreu abuso e, na tentativa de sair da posição de vítima, assume a de carrascoNormalmente, o problema se manifesta cedo: logo na adolescência já há curiosidade em relação aos mais novosA pessoa vive uma vida inteira e, quando é descoberta, já tem todo um histórico de abuso de muitos anos.”