As mãos desenhadas pelo tempo seguram a velha fotografia de família – tirada logo que ela se mudou para Belo HorizonteNa cena, Esmeralina, pequenina, aos 4 anos, entre os pais no Parque Municipal Américo Renné GiannettiNo 26º andar, no imóvel comprado “com muito suor”, encapados, cheios de letras manuscritas, dezenas de diários recheados de histórias“Pedaços da minha vida”, sorriOrgulhosa, exibe as plantas que ocupam boa parte da sala“É minha pequena Amazônia” Divertida, conta que chegou a ter uma árvore de mogno que chegou ao teto.
Pela casa, duas dezenas de quadros espalhados, inspirados na natureza e na capital mineiraUm em especial, quase do tamanho da autora, luminoso, de esquina: o Maletta, romântico, retratado sob o olhar da vista comprometida e cansada da ex-camareiraAmador
Nem é preciso ser especialista para notar que Esmeralina aprendeu a pintar com a mesma desenvoltura e coragem que a levaram à escrita, apurada já na melhor idadeA combinação de amores – literatura e artes plásticas – resulta agora em dupla homenagem ao arranha-céu em que mora, declaradamente uma de suas maiores paixões Além do quadro, no computador – ela já domina o básico para escrever e pesquisar mundo afora –, há também o rascunho de um livro autobiográfico intitulado Um grão de areia no universo, onde conta personagens e histórias vividas no Maletta.
Incansável, praticante de ginástica todas as manhãs, a ex-camareira é senhora de muitas artesAo abrir as portinhas da estante, Esmeralina traz à mesa recortes, medalha de premiações e diploma de esperanto“Mas aí, a gente não tem com quem conversar e desaprende tudoUma pena”, lamentaEntre os documentos, destaque em Talentos da Maturidade em Literatura e em Artes Plásticas, além de premiação em poesia
Superação
Mãe de filho único, Esmeralina é só felicidade com Damião“Tenho muito orgulho dele, porque sou caipira e ele, formado em direito, não tem nenhuma vergonha de mim”, dizA ex-camareira, de família muito pobre e “passado de fome e muitas surras”, não gosta de falar sobre seus dissabores“Tudo o que é bom eu guardoNão gosto das lembranças tristes”, ressaltaAinda assim, abre o baú de infelicidades para contar que de 11 filhos “apenas Damião vingou”.
“A história da minha família dá uma novela, meu filho Aos 15 anos, perdi minha mãe durante o 19º trabalho de partoMeu pai se casou novamente e arranjaram casamento para mim com o irmão da minha madrastaVeja só… fui tia e irmã de mais 10 filhos que o meu pai teve Aos 26, depois de um filho depois do outro, todo ano, inclusive dois gêmeos, fiquei viúvaAlguns já nasceram mortos e outros morreram pouco tempo depois de nascer”, relembra, com os olhos vivos e profundos.
A conquista com a faxina
O salto na vida de poucos recursos veio por meio da faxina no Conjunto Santa Maria, onde foi faxineira, ascensorista, porteira e vigia“Eles gostaram do meu serviço e me deram muita faxinaTanto que montei uma empresa de limpezaTudo com o meu filho me ajudando muitoEle nunca saiu de perto de mimDepois de muita luta, viemos para o Maletta, em 31 de julho de 1974”, conta.
Ao falar do edifício histórico de BH, que a acolheu, ritmo da fala e olhar mudamConta da coletânea de memórias em fase de revisão e mostra o quadro terminado há duas semanas.
Traz para a mesa O grande hotel, livro de Luís Góes, uma de suas principais fontes de pesquisa para a empreitada da homenagemPausa no mundaréu de lembranças e traz Deus para a conversa, dizendo-se mais kardecista “Agradeço todos os diasPor tudoVeja só que formação religiosa é a minha: pela manhã cresci na Igreja Católica; à tarde entre protestantes; à noite no centro espíritaAprendi a confiar no amor de Deus e acreditar muito em Jesus”, revela.
De tempos de sombras na Avenida Augusto de Lima, Esmeralina lista aborrecimentos que enfrentou com a antiga administração, entre 1974 e 2005Diz que nem os anos de chateações seguidas por desentendimentos com o ex-síndico foram suficientes para afetar sua alegria em morar no prédio, “o mais importante de toda a história cultural da cidade”Para findar a conversa, ajeita os óculos, abre o sorrisão bonito e resume sua obra em lápis e pincel: “Meu filho, deixei o inferno, larguei uma vida esfarrapada na Vila Futuro, hoje Bairro Caiçara, e vim ser feliz no Maletta”.
ENQUANTO ISSO..
..TOMBAMENTO EM DISCUSSÃO
Nos elevadores e corredores do Edifício Arcângelo Maletta o panfleto explica o que é tombamento“…é concedido ao bem cultural um atributo para que nele se garanta a continuidade da memória…”Segundo o síndico, Amauri Batista dos Reis, o impresso é para desfazer o mal- entendido entre alguns sujeitos que espalharam que o prédio estava para ser derrubadoDesde janeiro, a administração discute a possibilidade de encaminhar pedido de tombamento do prédio ao Conselho Deliberativo do Patrimônio Cultural do Município de Belo Horizonte“O Maletta precisa de reformaEntendemos que o tombamento possa ajudar a preservar melhor o prédio, mas é preciso que a maioria esteja de acordo”, explica Amauri.
UM GRÃO DE AREIA NO UNIVERSO
“Outra pessoa interessante foi o jornaleiro José do Carmo, conhecido por Tostão ou SapoHomem de baixa estatura, cabeça grande, olhos arregalados, voz rouca e possanteAssim era o nosso saudoso Tostão, algumas pessoas dizem que ele foi assassinado…”
(Trecho de uma das histórias de Esmeralina Oliveira)