Sílvio (nome fictício), de 47 anos, internou-se semana passada, por vontade própria, no Instituto Raul Soares, em Santa Efigênia, na Região Leste de Belo HorizonteViciado em álcool e crack, ele buscou o hospital psiquiátrico para se livrar das drogas, uma situação que está se tornando cada vez mais comumNa capital, usuários de crack lotam os dois principais hospitais públicos do Complexo de Saúde Mental da Fundação Hospitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig)No Instituto Raul Soares, dos 108 leitos psiquiátricos voltados para internação gratuita de casos agudos, 88 estão ocupados por dependentes da droga (81%)No Hospital Galba Veloso, a situação é bem semelhante: 70 dos 115 leitos estão destinados a viciados, o equivalente a 61% do total.
Para o psiquiatra Paulo Roberto Repsold, coordenador de saúde mental da Secretaria de Estado da Saúde, o recurso de internar viciados em crack e portadores de transtornos mentais no mesmo espaço mostra como o avanço da droga se tornou crítico“Estamos atravessando uma endemia de crack, uma doença complexa, crônica e de altíssima taxa de reincidênciaTemos de usar todas as vagas para atender a demanda por internação de usuários da drogaO número de leitos em hospitais gerais é mínimo,” justifica o médico.
Maurício Leão, diretor do Raul Soares e presidente da Associação Mineira de Psiquiatria (AMP), ressalta o tamanho do problema“O desafio do crack é grave demais para a cidadeO hospital psiquiátrico ainda é um lugar que se apresenta como disponível para internar esses pacientesNenhum outro ambiente está conseguindo acolher os usuários da droga”, defende
Dos 88 dependentes químicos internados no hospital, cerca de 30 foram encaminhados pela Justiça para internação compulsória“Corro até o risco de ser preso por descumprimento de ordem judicial se não arranjar vaga na hora”, explica LeãoSegundo ele, a aceitação dos dependentes de crack no Raul Soares, voluntária ou compulsória, cria problemas de outra ordem para o hospital psiquiátrico“Tenho de chamar a polícia para vigiar os horários de visita dos pacientes, evitando que amigos e familiares tragam drogas disfarçadas na comida ou nas roupasJá flagramos também a internação de traficantes que se fazem passar por pacientes e vendem drogas dentro do hospitalNão é uma questão simples”, afirma.
Agressões e temores
A convivência entre drogados e portadores de transtornos mentais não é tranquilaOs usuários de crack se sentem desconfortáveis e confessam ter medo de ser atacados
Como Sílvio, o pedreiro Luciano (nome fictício), viciado em crack, pediu para ser internado no Raul Soares, onde está desde 31 de marçoCedeu à insistência da mãe e foi para o hospitalO uso contínuo da droga já o afetouNão se lembra da própria idade: “Estou com quantos anos, mãe?” A mulher responde: “Vou te dar uma dicaNo próximo mês você faz aniversárioDe quantos anos?” O rapaz pensa um pouco: “Vou fazer 25”A mãe confirma.
Luciano tem receio de os “doidos”, como diz, lhe fazerem mal, especialmente à noitePara se sentir mais seguro, fez um acordo com dois dependentes químicos com quem divide o quarto: “Um defende o outroA gente fica atento para não deixar doido entrar no quartoSe um entrar, quem acordar primeiro tem que botá-lo para fora.” O rapaz, que morava com a mãe no Bairro Juliana, Região Norte da capital, preferiria que os usuários de drogas fossem tratados à parte“Acho ruimAs coisas que são para o doido não servem para o dependenteNão dá para tratar os dois juntos”, argumenta.
“Aqui tem gente de toda espécie”, reconhece Gilberto, o rapaz que ofereceu café e pão a SílvioDiagnosticado como esquizofrênico, ele não se incomoda em conviver com dependentes químicos“Não tenho preconceito nenhum contra quem usa droga, não tem nada a ver” Ele desconfia é de funcionários do instituto: “Aqui, tanto faz amanhecer vivo ou morto”Em poucos minutos de conversa, Gilberto atribui diferentes identidades a seu interlocutorEm um momento, está diante de seu “irmão mais querido”No instante seguinte, dá ordens ao “escrivão” responsável por redigir seu testamento.