Jornal Estado de Minas

Em pleno século 21, número de pessoas obrigadas a viver sem luz em Minas beira 80 mil

Conheça a rotina de quem acorda e dorme com o sol e nem imagina quando isso mudará

Paola Carvalho

A casa modesta de Ailton Acácio da Paixão - à noite, só o céu tem pontos iluminados - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Catas Altas – Acordar com o galo cantando, moer o café e passá-lo no coador de pano, almoçar um feijãozinho preparado no fogão a lenha, trabalhar diante da mata nativa, dormir pouco depois de o sol se pôrO cenário poderia ser o idealizado por muita gente que atravessou um dia intenso de trabalho, trânsito e problemas na metrópoleMas, para Ailton Acácio da Paixão, de 41 anos, a lida no campo é uma vida sofrida, complicada pela falta de energia elétricaPara conhecer uma realidade que indica atraso impensável para muita gente que vive imersa na era da informação, o Estado de Minas acompanhou a rotina desse homem, que em pleno século 21 vive sem luz na comunidade chamada Abertura, no município de Catas Altas, Região Central de Minas, a 120 quilômetros da capitalO cotidiano dele é o espelho do que enfrentam cerca de 20 mil famílias espalhadas pelo estado, que, assim como Ailton, vivem dependendo do sol, do lampião e do esforço físico para as tarefas diáriasConsiderando a média familiar de quatro pessoas por moradia, é como se uma cidade do porte de Nova Lima, na Região Metropolitana de BH, vivesse no escuro.

A Companhia Energética de Minas Gerais (Cemig) informa que entre os 20 mil domicílios a serem beneficiados estão novos pedidos de ligação e demandas remanescentes do programa federal Luz para TodosNão há, porém, previsão de quando toda essa gente será atendida, já que a nova fase do programa não foi autorizada pela Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e pelo Ministério de Minas e Energia“A Cemig está pleiteando a inclusão do estado na quarta etapa do programa”, informou a empresa, em nota.

Má notícia para Ailton da PaixãoIlhada em um vale cercado por pés de eucalipto, a propriedade é identificada pela placa na porteiraQuem chega de carro não é anunciado por campainha, mas por latidosSão Honda, Leste e Barão

Como não dá nem para sonhar com alarme, são eles que defendem os dois alqueres de AiltonNão fosse pela fumaça que sobe da casa de pau-a-pique, não seria de se imaginar que alguém morasse ali

 

  SEM LÂMPADAS - Ailton cozinha com lenha, à luz de lampião - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press

 

Mas Ailton resiste e, no terreno fértil, não só vive, como tira o sustento de toda a família – a mãe, a mulher e os sete filhos, dos quais ele faz questão de citar os nomes“Anota aí: Cássia Severina, Joelmir Santos, Rafael Rodrigo, Claiton Inácio, Beatriz Lopes, Jaíne de Fátima e João Abadi Todos de sobrenome Paixão”, enumeraO carinho é grande, mas a famíla foi obrigada a se separar por causa da falta de luz“Não é fácil viver assimEles moram com a minha mãe, no Fonseca, um arraial onde as condições são melhores”, lamenta.

“Vamos entrar”, convida Ailton Na casa de cozinha, quarto, banheiro e um cômodo onde ele guarda mel das colmeias que mantém, chamam a atenção a mesa comprida de madeira, panelas de alumínio areadas sobre a pia limpa, chão batido bem varrido e, claro, fogão a lenha acesoE duas curiosidades, que ele mesmo aponta

“Tá vendo essa boquilha dependurada? Já cheguei a usar lâmpada recarregável, mas a bateria não dura nadaDesistiE esse aqui é meu celular, que carrego quando vou à cidadeNão tenho luz aqui, mas o telefone chega a pegar em alguns lugares”, diz, antes de soltar a gargalhada.

Como no passado

A conversa segue à medida em que ele mói os grãos de café colhidos no quintal“Esse moedor de ferro é antigoFoi da minha mãe”, recorda AiltonFeito o trabalho que lhe traz boas lembranças, é hora de passar o pó no coador de pano“Não saberia fazer de outro jeitoNem sei o que é cafeteira”, afirmaA próxima refeição preparada como faziam seus antepassados é o almoço, que começa a ser feito às 8h

Enquanto as panelas estão no fogo – e terão de ficar por um longo tempo, para chegar no ponto – é hora de conferir os estragos que os coelhos fizeram na horta à noiteNão é à toa que eles se tornaram frequentadores assíduosTem alface, couve, cebolinha, alho, rúcula, cenoura, beterraba, almeirão, pimentas, inhame..Ailton aproveita para colher o que usará no almoço“Tenho que fazer tudo isso todo dia, porque não tenho geladeira para guardarTudo se perde de um dia para o outro”, suspira, esfregando as mãos calejadas.

 

SEM MOTOR - Engenho produz pouco, pois faltam máquinas - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press 

 

À tarde, as atividades se alternam, de segunda a sexta-feira, entre colmeias, o galinheiro, a horta, o pomar, o canavial, o bananal, o mandiocal, a plantação de milho, a limpeza do terrenoAchou muito? Pois ele ainda construiu três grandes fornos de barro, onde a cada sete anos transforma seus cerca de 4 mil pés de eucalipto em carvãoE nada de máquinasTudo no braçoMas o que Ailton queria mesmo era produzir cachaça“Desisti, porque preciso de energia elétricaJá tenho o engenho, mas faço pinga por esporte, só para agradar amigoPreciso de luz para produzir em escala.”

Batem 18h e quem informa o horário é a escuridãoDentro de casa, já é preciso acender o lampião a gásAilton não tem dificuldade alguma, seja na claridade, seja no breuPara quem não está acostumado, o medo chega com a escuridãoNão para o agricultor“Sozinho, aqui, a única coisa de que eu tenho medo é de gente”, afirmaA falta de luz, naquele momento, só tem uma vantagem: apreciar o céuNa noite de Ailton, e de uns 80 mil mineiros, são as únicas luzes que brilhamE não está escrito nelas quando a energia vai chegar

 

SEM GELADEIRA - Colheita tem de ser diária, para evitar perdas - Foto: Alexandre Guzanshe/EM/D.A Press