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Estado de Minas

Capoeira atrai estrangeiros em Minas Gerais

Gringos se rendem à tradição afro-brasileira ao entrarem na roda de berimbaus e pandeiros em busca de equilíbrio físico e mental e uma nova filosofia de vida


postado em 17/03/2012 06:00 / atualizado em 17/03/2012 07:07

Sede da Associação de Capoeira Angola Dobrada, no Bairro Horto, na Região Leste de BH, é palco para a
Sede da Associação de Capoeira Angola Dobrada, no Bairro Horto, na Região Leste de BH, é palco para a "mandinga, a manha e a malícia" para quem veio de outras partes do mundo (foto: Fotos: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)

Na roda de suor, peles, olhos e cabelos há cores e estilos bem diferentes. Negro, muito negro, e branco muito branco, de outras culturas e pedaços do planeta, treinam comandados por moça arisca, nascida e criada em Belo Horizonte. Em sala justa, a alma ginga mandingueira. Chad Fishwick, de 26 anos, da Austrália, Momo Holndrich, de 31, da Alemanha, e Mattia Ribani, de 28, da Itália, assim como os brasileiros discípulos de mestre mineiro radicado em Frankfurt, têm paixão pela capoeira angola. Seduzidos pela filosofia de vida do patrimônio cultural do Brasil, os três deixaram suas terras para viver em paisagens de Minas Gerais ao som de berimbaus, pandeiros e caxixis.

Para falar da capoeira angola é preciso antes voltar no tempo e pedir a bênção a um sujeito chamado Vicente Joaquim Ferreira Pastinha, de Salvador (Bahia), nascido em 5 de abril de 1889. Aprendiz de mestre africano e praticante desde criança, Pastinha começou a ensinar a “mandinga, a manha e a malícia” da Angola em 1910 e foi o principal responsável pela difusão da sua “arte de vida” Brasil afora, ecoando pelo mundo. “Nós, capoeiristas, temos a alma grande, que cresce como alegria. Há quem tenha a alma pequena que vive como as águas em agonia.” É dele o verso desenhado na parede da Associação Cultural Eu Sou Angoleiro, de mestre João, no Morro do Cascalho, na Região Oeste de Belo Horizonte.

Em tempo presente, do outro lado da cidade, no Bairro Horto, na Região Leste, na Associação de Capoeira Angola Dobrada, Chad, Momo e Mattia chegam para os treinos do dia com a contramestre Alcione e outros seguidores dos ensinamentos de mestre Pastinha. O trio de estrangeiros vai cedo para o aquecimento. A sala tem cerca de 40 metros quadrados, protegida por portão de aço que dá para a Rua Capitão Bragança. Enquanto os instrumentos da bateria estão adormecidos sobre o banco de madeira, os sons do espaço são os das solas dos sapatos que desenham o chão. “Você chama a pessoa para o movimento. É bem curtinho, rasteiro, bem rente ao chão…”, orienta a contramestre. O australiano, o alemão e o italiano, cheios de jogo de cintura, acertam o passo.

Os três não são iniciantes. Chad, professor de inglês, com histórico em artes marciais, faz capoeira desde 2001, ano em que conheceu mestre Gringo, do grupo mineiro Bantus, na Austrália. Da regional para a angola foi um pulo. Conhecedor dos dois estilos, Chad, agora, está mergulhado no universo de raiz “manhosa e mais rasteira” – o começo de tudo. Antropólogo de formação, Momo é capoeirista há 12 anos, aprendeu com mestre Rogério, residente em Frankfurt, na Alemanha. No país, o grupo Angola Dobrada, de BH, já está também em Kassel, Göttingen, Freiburg, Hamburgo e Karlsruhe. Como em Chad, os cuidados com o corpo, a mente e a música foram fatores decisivos para a entrega à nova filosofia de vida de Momo.

Mestres

Perto do alemão e do australiano, Mattia tem a estatura dos mestres pequenos. Não é menos habilidoso ou experiente. O italiano começou a jogar capoeira, aos 19 anos, quando trabalhava como cozinheiro profissional na Inglaterra. No retorno a Bolonha, o jogo de roda já fazia parte da vida de Mattia. “A capoeira atrai pessoas com um mesmo jeito de ver a vida. As pessoas estão abertas para receber umas as outras. Hoje, na Europa, há muitos estudiosos da capoeira”, diz. O cozinheiro, estudante de serviços sociais na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), está no Brasil desde agosto e vê na capoeira resgate histórico essencial, além de importante facilitador de intercâmbios culturais.

Longe da Europa, há outro líder brasileiro, “angoleiro” de sucesso entre os estrangeiros: João Grande, de Itagi (Bahia). Aos 79 anos, o mestre – ex-aluno de Pastinha – vive em Nova York desde 1990. Lá alcançou o que não sonhava ter no Brasil. Doutor honoris causa pelo Upsala College, de New Jersey, João Grande é a prova viva da força da capoeira pelos cinco continentes, atualmente, treinada em mais de 150 países. “Aqui, estou nascendo de novo. No Brasil, estava morrendo”, considera. João Grande foi dos “angoleiros” que mais sentiram a morte de mestre Pastinha, em novembro de 1981, depois de tempos de muita melancolia em território baiano.


A força dos filhos da terra

Para entender melhor a filosofia de vida afro-brasileira que tanto fascina os estrangeiros, o Estado de Minas acompanhou um mestre mineiro e seus discípulos em manhã de treinos na Associação Eu Sou Angoleiro, no Bairro Gutierrez, na Região Oeste. Numa casa em obra, transformada em centro de cultura e serviços sociais, o ambiente tem clima e atmosfera de rito sagrado. Todos os que chegam ao cômodo estreito, ainda que pela primeira vez, recebem um instrumento para fazer parte da bateria. O clima é de absoluto respeito. Mestre João inspira calma e exibe com discrição a alma atenta de professor de responsabilidade.

Depois do treino e dos jogos do dia, a roda celebra o encontro. No centro, um vaso com margaridas brancas, colocado caprichosamente pela dançarina e capoeirista Lena Santos, um só sorriso, mulher do mestre. Para o “angoleiro” Júlio Pereira, “a saúde é a base de tudo”. E completa: “A primeira casa que Deus nos dá é o nosso corpo”. Percebe-se facilmente que naquele endereço, assim como no Bairro Horto, onde treinam Chad, Momo e Mattia, capoeira é atitude. A associação atua em pelo menos 15 comunidades carentes de Belo Horizonte e região metropolitana. Motivo de orgulho para o grupo. É a vez de mestre João, de 53, bom ouvinte, falar.

O negro de barba grisalha e pouco cabelo tem a fala suave, mansa, como seus movimentos em ação. Compartilha as lições que aprendeu cedo, no início dos anos 1970, com mestre Dunga, na Vila dos Marmiteiros, no Bairro Padre Eustáquio. Defensor da capoeira angola, fala de “sensibilidade, identidade e liberdade”. “São princípios, habilidades que não são apenas físicas, são mentais, emocionais e espirituais. Uma visão de mundo”, explica. Avô e pai de família, o mestre não comenta andar o mundo com seus pés de angoleiro. Enraizado, fez a opção de se manter por perto dos filhos de sua terra. Aqui, até os japoneses já vieram jogar com João.


PERSONAGEM DA NOTÍCIA: ALCIONE ALVES DE OLIVEIRA, DE 35 anos, CONTRAMESTRE

(foto: Fotos: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
(foto: Fotos: Maria Tereza Correia/EM/D.A Press)
Modo de viver com muita fé
Nascida e criada em Belo Horizonte, Alcione Alves de Oliveira, de 35 anos, é a primeira contramestre da capoeira angola em Minas Gerais. Na ausência dos mestres Índio e Rogério, é ela quem comanda os treinos e ampara os estrangeiros na Associação de Capoeira Angola Dobrada, no Bairro Horto. “Angoleira” desde a adolescência, Alcione tem a filosofia difundida por mestre Pastinha no corpo e na mente. “A capoeira é um modo de viver. Transforma o cotidiano. É um mundo de cabeça para baixo de um modo positivo. É muita força e fé. É acreditar que o respeito à ancestralidade é uma maneira de nos aproximar de Deus, dessa energia”, ensina.
 


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