Jornal Estado de Minas

Dor transformada[

Rede de apoio ajuda famílias a lidar com o luto

Guimarães Rosa (1908-1967) tratou a morte como "encanto". Rosiano, "encantou-se". Da vida, uma única certeza: esse tal encantamento. O fim de tudo para muitos é apenas pedaço do viver para alguns. Se a maioria das pessoas prefere não tocar no assunto, há histórias fortes de gente que busca aprender a lidar com o início e o meio, sem se desesperar com o final.

Jefferson da Fonseca Coutinho


Em 21 de abril de 1998, numa curva, na volta de um churrasco entre amigos em Santa Luzia, Região Metropolitana de Belo Horizonte, Camile, aos 18 anos, “se encantou”

Estava de carona, com outros três ocupantesLançada para fora do veículo, ela a única sem vidaO mundo em desencanto nos corações do pediatra Eduardo Carlos Tavares e da psicóloga Gláucia Rezende Tavares, pais de Camile“Somente a certeza de sermos amados e de que nossa filha também o foi é capaz de nos dar forças para transformar a imensa dor da perda em energia criativa, em vez de depressão”, escreveu o médico em Do luto à luta, lançado em 2001, com duas tiragens esgotadas.

 Ao lado da mulher, além do livro, Eduardo deu início à Rede de Apoio a Perdas Irreparáveis (API), que em mais de 10 anos já conta com 4 mil pessoas cadastradas em Minas Gerais, no Espírito Santo e na BahiaMuito unido desde os tempos de namoro, o casal entendeu precisar de ajuda na dor desmedida da falta de Camile “Na nossa primeira reunião, eram apenas amigos e parentesTodos com uma história de perda”, revelaEduardo e Gláucia foram pioneiros na criação de uma espécie de clube do luto no Brasil, com o objetivo de unir forças e compartilhar vivências, desvinculados de qualquer crença religiosa.

 “Nossa força é muito maior que o nosso gestoNós não avançamos sozinhos”, diz o médicoGláucia, a mulher companheira, estudiosa e profissional da psicologia, tem bem mais que opinião técnica sobre o luto
Mãe apaixonada, fala em “serenidade para poder lidar com os fenômenos da vida e fazer o melhor possível sempre”A fundadora da API diz que o trabalho é também pela preservação da memória de quem partiuNa saudade de Camile, a psicóloga buscou se fortalecer pelo bem e futuro da filha mais velha, Ivana“Além de perder a irmã, ainda ter que conviver com os pais em pedaços… Não seria justo.”

 No apartamento do Bairro de Lourdes, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, há uma parede com retratos da bela CamileUm cantinho externo especial em memória da menina “encantada”Há também a “reedição da família”, personificada numa mocinha linda de olhos brilhantes, com 1 ano e oito meses de doçuraBárbara, a netinha, filha de Ivana, que também faz reviver Guimarães Rosa, com o desafio de ter alegria, ainda mais no meio da tristezaGláucia, avó coruja, ressalta a força e o significado da palavra “prosseguir”: “Seguir em prol de alguma coisa”.

Falar faz bem

Para Eduardo e Gláucia, falar de Camile é bomÉ um aprender de maneira simbólica a lidar com uma nova realidade“Terrível é quando você mata a memória
É não poder falarO falar revive a tristeza, mas também revive o lado bomIsso é restaurar, o que é muito diferente de superar”, diz GláuciaCúmplices no sorriso da saudade, pai e mãe, falam em “doces lembranças” e na satisfação de testemunhar a “restauração” de muitos participantes da Rede APIComentam com admiração a força e a coragem de uma associada que, tempos depois de ter presenciado o assassinato do marido, teve o filho morto, também esfaqueado.

O médico, desde o princípio, não queria que a rede “se transformasse em doutrina”Para ele, é espiritualidadeLamenta o fanatismo que se apropria de quem está vulnerável“Cada um tem o seu Deus e isso precisa ser respeitado

Independentemente da religião, podemos ter Deus como uma energia amorosa para a gente continuar vivendo harmoniosamente”, dizGláucia chama a atenção para o fato de que não somos educados para a morte e que, às vezes, os consolos são equivocados e apresentam um “Deus terrível”, com frases prontas do tipo ‘foi porque Deus quis”Para a psicóloga, o “encantar-se” de Rosa não é nada disso.

 

O estudo da morte

A Sociedade de Cuidados Paliativos e Tanatologia de Minas Gerais (Sotamig) tem ajudado muita gente a lidar com a morteEntre os estudiosos do fim da vida física, tratado como encanto na literatura rosiana, destaca-se outro médico escritor: Evaldo AD’AssumpçãoAutor, entre outros, de Os que partem, os que ficam e de Dizendo adeus – Como viver o luto, para superá-loNos dois livros, o especialista recorre à história, à ciência e à religião para fundamentar apontamentos de auxílio na elaboração do lutoAs ideias do doutor palestrante foram fundamentais para o amparo de pessoas em luto de várias regiões brasileiras, além de contribuir com a formação de preceptores auxiliares

Dentre eles, Júnia Drumond, psicóloga, desde o início dos anos 2000 mergulhada no estudo da morte e de suas consequênciasFoi no papel de boa ouvinte que ela entrou na vida de  Juraci Barbosa Lima, juiz aposentado, que, em 2010, perdeu a mãe de seus três filhosO fim da parceria de 35 anos por um câncer no intestino foi “golpe difícil” para Juraci“Sinto muita saudadeO grande problema ainda é a solidão e o desânimo, mas sinto-me um pouco melhor.” No meio de tanta tristeza, a chegada da netinha Maria Luiza, de sete meses, para ajudar a confortar a família.

Coração partido também é o caso de Tânia Amaral de Almeida Marra, de 60Entre namoro e casamento foram 41 anos de história ao lado do marido, José Tarcísio Marra, vitimado por doença degenerativaForam três anos de luta e dor relatados por Tânia, com passagens de tocar a alma: “Ele entrou com nossa filha na igreja, muito magro, já com uma cor verde… Daí em diante, os ossos dele foram se quebrandoNuma ocasião, ele me chamou e falou com muita dificuldade: ‘Tânia, será que não tem jeito de acabar logo com isso?”Quase quatro anos passados, a viúva se mostra animada, agradecida pelo apoio vindo da tanatologia.

 Entre os reunidos no consultório de Júnia para conversar com o EM, há ainda Sueli Gomes Diniz, de 53, cheia de saudade da irmã mais nova, Roseli, morta ano passado, aos 46Conta com tristeza que, em 20 dias, viu a familiar querida, bem casada e cheia de planos, partir, vítima de câncer decorrente de uma gravidez molarPara Sueli, espírita, é preciso aprender a estar preparado para cruzar com as perdas irreparáveis a qualquer momento“A vida perdeu um pouco o brilho para mimÉ uma fasePor outro lado, perdi um pouco do horror da morte”, revela

 

“Não deixei de amar a DeusO avião caiu, não é!?’’

Em 3 de maio de 1963, em São Paulo, logo depois da decolagem, o motor de um avião da Cruzeiro do Sul pegou fogo e caiu perto do aeroporto de Congonhas, matando 34 pessoasEntre as vítimas, o engenheiro Waldemar Cardinali, 44 anos, marido de Sebastiana Leite Cardinali, a “Tita”

Em Belo Horizonte, a mulher, mãe de quatro filhos, transformou a dor em fé“Não deixei de amar a Deus

O avião caiu, não é!? Uma fatalidadeFoi minha fé a minha salvação.” Em 1987, depois de longa jornada voluntária, Tita fundou a Pastoral das Viúvas, na Paróquia de São Mateus, no Bairro Anchieta, onde, uma vez por mês, se reúne com outras 14 mulheres enlutadas