Jornal Estado de Minas

Burocracia mantém fechada ala de tratamento de câncer há quase dois anos

Obra foi viabilizada por mais de R$ 1 milhão em doações, mas governo não conseguiu providenciar a única parte que lhe cabia na parceria: contratar pessoal

Paola Carvalho

Luana Silva com a tia, Marisa: estrutura ociosa poderia apoiar pacientes - Foto: Beto Magalhães/EM/D.A Press

A pequena Luana Silva, de 9 anos, é o xodó da Fundação Sara, uma instituição que dá apoio às famílias que vêm do interior trazendo crianças com câncer para tratamento na capitalDe vestido novo, “presente de Papai Noel”, ela conta que deixou Nova Serrana, a 133 quilômetros, no Centro-Oeste de Minas, onde morava com a avó e um irmão mais velho, para “sarar a leucemia”Em sua inocência, ao lado da tia Marisa Silva, diz que adora os novos amigos que fez e a sala de TV com golfinhos do lugar onde passou a morarÉ um tipo de suporte indispensável para quem, como ela, enfrenta um inimigo traiçoeiro e um tratamento de efeitos colaterais muitas vezes devastadoresUm apoio que poderia ser ampliado em Belo Horizonte, não apenas para a menina que luta pela vida e sonha ser veterinária, mas para nada menos que 88 famílias por mêsO serviço que ofereceria essa acolhida existe há quase dois anosNão custou um centavo ao poder público, pois foi erguido com doações de cidadãosMas está de portas fechadas graças à burocracia oficial.

A Unidade Onco-Hematológica Pediátrica Professor Marcos Borato Viana, do Hospital das Clínicas da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é fruto de investimentos de R$ 1,37 milhãoFoi inaugurada em maio de 2010, por meio de parceria com a Fundação Sara e o Instituto Ronald McDonald, que por três anos seguidos dedicou a arrecadação da Campanha McDia Feliz ao projetoPassados quase dois anos, até hoje não abriu as portas, nem tem previsão de quando de fato entrará em funcionamentoO que falta? Médicos, enfermeiros, terapeutas, informa o HC
A única parte da estrutura que depende da ação do governo.

Ao contrário do que sugere o nome da campanha que viabilizou a construção, a ala se transformou no símbolo de uma triste espera, não só para as famílias de pacientes, mas para todos os que fizeram doaçõesVazia, a unidade tem 22 leitos, mais de um terço do que o hospital já dispõeAtualmente, a Unidade de Internação Pediátrica do HC conta com 60 vagas, onde se internam crianças e adolescentes de 0 a 18 anos com os mais diversos tipos de patologias, mais da metade em tratamento de câncer“A nova unidade deveria proporcionar a esses pacientes, submetidos ao desgastante tratamento de câncer infantil, mais conforto e segurança, minimizando o risco de infecções oportunistas”, destacou o HC, por meio de nota.
Ala que está fechada tem 22 leitos, além de estruturas de apoio a profissionais e familiares e espaço para que crianças em tratamento brinquem enquanto se recuperam - Foto: Hospital das Clínicas/Divulgação
A burocracia, no entanto, segue cega e surda à batalha de famílias obrigadas a encarar a doençaO HC informa que, para o funcionamento da nova ala, é necessário concurso público, pois, imerso em dívidas, o hospital não tem recursos próprios para bancar contrataçõesMas o concurso parece longe de se tornar realidadeCom a criação da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), que em dezembro passou a administrar os hospitais universitários do país, qualquer aumento no número de funcionários está suspenso“Aguardamos a contratação de pessoal por concurso público, ou ainda, a regulamentação da Ebserh”, informou o hospital, por meio de nota.

O Ministério da Educação, órgão ao qual a Ebserh está vinculado, se limitou a informar que “a regulamentação está em andamento, mas não há informações sobre prazos”A burocracia, que engessa não apenas o HC/UFMG, mas os 46 hospitais universitários espalhados pelo país, frustra as expectativas do presidente da Fundação Sara, Álvaro Gaspar Costa“É uma unidade extremamente importante para o sucesso do tratamento do câncer infantojuvenil em Minas
A gente fica angustiado de ver toda essa estrutura linda fechada pela burocraciaFoi um investimento alto, não é à toa que o não funcionamento incomoda a todos, incluindo os médicos”, desabafa.

ESTRUTURA DE PONTA
A ala onco-hematológica tem 798,5 metros quadrados de área totalVinte leitos estão distribuídos em quatro enfermarias e dois são isolados, com ar filtrado, para receber pacientes recém-transplantados de medula ósseaNo espaço há refeitório, posto de enfermagem totalmente equipado, além de salas para material esterilizado e preparo de medicamentosA ala abriga ainda a estrutura administrativa e oferece conforto para a equipe assistencial e acompanhantesNo último andar do HC, também foi construído um solário com 155 metros quadrados, com acesso por escada interna ou por plataforma elevatóriaLá, foi instalada uma brinquedoteca, com espaço de recreação e equipamentos lúdicos diversosToda a estrutura já poderia ter atendido, desde maio de 2010, pelo menos 800 famílias.

A construção da unidade teve a participação de uma legião de voluntários, já que os R$ 1.230.660,15 aplicados na obra bruta e R$ 142.463,97 investidos na humanização dos ambientes foram arrecadados de clientes do McDonald’sO dinheiro veio de campanha realizada nos restaurantes da rede americana em Belo Horizonte, Contagem e Betim, na região metropolitana da capital, Ipatinga (Vale do Aço) e Governador Valadares (Vale do Rio Doce) e também por meio da campanha dos cofrinhos, iniciativa que incentiva a doação dos trocosO projeto ainda recebeu recursos do torneio de golfe do Instituto Ronald McDonald, realizado em 2008.

De acordo com o instituto, foram feitas sucessivas doações para as obras, que totalizaram exatos R$ 1.373.124,12, porque “foi um projeto considerado de alta relevância para a população”A contratação de pessoal, no entanto, não faz parte do acordo“O dinheiro foi bem utilizado por uma instituição idônea, mas não nos cabe interferir no quadro de funcionáriosO problema é que o hospital está engessado, por ser administrado por uma autarquia federal”, disse a entidade, por meio da assessoria de imprensa.

 

Solidariedade

A Fundação Sara foi criada pelos pais, parentes e amigos da pequena Sara, que em 1996 precisou fazer um grave e oneroso transplanteEla não resistiu ao câncer, mas a corrente de solidariedade se mantém até hojeOs pais da menina, Marlene e Álvaro Gaspar Costa, inauguraram uma casa de apoio às crianças com a doença, em 1998, em Montes Claros, no Norte de Minas, onde moramEm 2010, abriram as portas de uma filial em BH, mantida por doaçõesA assistência é dedicada a crianças e acompanhantes que vêm do interior para a capital enfrentar o tratamentoConsiste essencialmente em hospedagem, refeições, transporte, atendimento por profissionais de serviço social e educação, entre outrosO telefone de contato é o
31) 3284-7690.