Jornal Estado de Minas

Depois do amor, desamparo

Mulheres que viveram com homens casados têm dificuldade de obter pensão

Sandra Kiefer
Após 31 anos de relacionamento extraoficial, Joana e a filha ficaram totalmente desamparadas depois da morte do companheiro - Foto: Marcos Vieira/EM/D.A Press
Mulheres que se relacionaram com homens casados estão encontrando cada vez mais dificuldades para receber pensões por morte dos companheirosNos últimos anos, diminuiu o número desse tipo de pensão, obtido na Justiça por concubinas, como são chamadas na lei as mulheres que se submetem a manter relação paralela e duradoura com homem casado oficialmenteNo INSS, o número de pensões por morte inferiores a um salário mínimo – o que indica que o valor original do piso da aposentadoria foi dividido entre duas beneficiárias – caiu de 4.529 em 2009 para 3.204 em 2010, o que corresponde a uma redução de 35% dos benefícios concedidos em dois anos.

A queda é reflexo do entendimento do Supremo Tribunal Federal (STF), que, em 2009, decidiu que a concubina não tem direito a dividir a pensão com a viúvaAté então, os tribunais vinham flexibilizando o princípio previsto na Constituição, de que somente o casamento gera direitosEm alguns casos, até aceitavam o adultério como uma forma de união estávelA discussão se deu no julgamento de um recurso interposto por uma viúva contra decisão do Juizado Especial Federalde Vitória (ES), favorável à concubina.

Ela manteve uma relação extraconjugal de mais de 30 anos com o falecido“Aqui o casamento seria impossível, a não ser que admitamos a bigamia ”, afirmou o ministro Marco Aurélio de Mello, sendo seguido pela maioria dos ministros do STFEles basearam sua decisão no artigo 1727, do Código Civil, segundo o qual as relações não eventuais entre o homem e a mulher impedidos de se casarem, constituem concubinato.

O ministro Carlos Ayres Britto foi vencido“Não existe concubinato, existe mesmo companheirismo e, por isso, acho que há um núcleo doméstico estabilizado no tempo”Para ele, é dever do Estado ampará-lo como se fosse uma famíliaO ministro foi derrotado, mas a partir do voto dele os processos passaram a usar os termos companheira ou convivente.

“Houve retrocesso da parte do STF” , acusa a advogada gaúcha Maria Berenice Dias, lembrando que antes havia a possibilidade de conceder algum tipo de direito ao reconhecer as uniões paralelas no país
Ela lembra que o adultério é subnotificado e que a Justiça, ao deixar de responsabilizar o homem, torna-se conivente com a prática“No fundo, liberou o adultério no país”, critica ela, lembrando que o adultério é diferente de ter amante ou caso esporádico.

Por gerar filhos, a mulher fica impedida de manter dois relacionamentos paralelos clandestinosAs exceções à regra viram filme, como o Eu, tu, eles, ou a consagrada obra de Jorge Amado, Dona Flor e seus dois maridosO temor de aprovar a bigamia no país, ainda que indiretamente, chegou a emperrar o andamento do projeto do Estatuto da Família na Câmara, apresentado pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (Ibdfam)“O projeto já tinha sido aprovado pela Comissão de Constituição e JustiçaFoi para a gaveta quando descobriram o recurso que dizia que mesmo mantendo impedimentos para o casamento, essas mulheres teriam direito à pensão e à partilha do patrimônio”, revela Rodrigo da Cunha Pereira, presidente do instituto.

DIREITO À HERANÇA


As famílias paralelas sempre existiram no BrasilA novidade é que as concubinas passaram a reivindicar seu direito à herança“Se o homem tiver que dividir o patrimônio, ele terá de pensar duas vezes”, diz Cunha, autor do livro Concubinato e união estável, lançado este anoEle defende a responsabilização do adúltero com a divisão da pensão e do patrimônio.

“Só me casei depois que fiquei viúva”, desabafa a professora Joana (nome fictício), que manteve um caso de 31 anos com William, com quem teve uma filha, hoje com 24 anosDepois que o companheiro morreu, em 2006, ela entrou na Justiça para receber a pensão de R$ 4 mil por morte
A sentença saiu, em julho de 2010, com a morte da esposa legítima.

O advogado conseguiu provar que Joana não era simplesmente a “outra”, mas fazia o papel de esposa na relação“Durante o julgamento, levei a certidão de nascimento da nossa filha, 3 mil fotos de viagens, natais e aniversários que ele passou conosco e 12 testemunhas, inclusive o síndico do prédio e o padre da igreja que frequentávamos juntos”, lembra.

“Faria tudo da mesma forma, porque ele foi o maior dos meus casos, como diz o Roberto CarlosSeria apenas menos ingênua de acreditar ser possível viver só de amorDividiria com ele a compra de um apartamento e uma poupança para a nossa filha, pois fiquei sem nada quando ele partiu”, afirma a professora, que faz malabarismos para pagar as prestações do carro, o aluguel do apartamento e ajudar no sustento da filha, que mora fora.

Ponto crítico- Concubinas devem ter direito à pensão?

Harlisson Scortegagni,
advogado especializado em direito de família e autor da causa de Joana

sim

“O concubinato não tem trazido maiores direitos às mulheres, que são as maiores vítimas do homemO Poder Judiciário tem reconhecido não o concubinato, mas a união estável pos mortem, que pode ser comprovada por meio de testemunhas e documentos, como contas bancárias conjuntas, fotografias de Natal e viagens de férias, contas de água e luz em nome do companheiroNão quer dizer que a concubina vai conseguir anular o casamento oficial no papel, mas se ela reunir provas de dependência econômica e, se for o caso, puder atestar a boa-fé de que não sabia que ele era casado (por viver em outra cidade, por exemplo), há boas chances de configurar a união estável para fins de dividir a pensão por morteJá o patrimônio fica para a esposa legítima, a não ser que o imóvel tenha sido adquirido depois de iniciada a relação e se tenha comprovado esforço comum dos dois parceirosEssa regra vale não apenas para casais, mas também para irmãos e parentes.”

Fernando ramos,
advogado especializado em direito de família

não

“Há concubinas honestas, que não sabiam que o homem era casado, mas a lei fala expressamente que o segundo relacionamento não pode ter proteção do Estado e gerar direitos patrimoniaisUma instituição clandestina não pode gerar direitos sobre uma instituição familiar protegida pelo Estado, que é a famíliaNão seria correto punir ainda mais o cônjuge enganadoMuitas mulheres fingem não saber da existência da outra, seja para não ir para a miséria, seja por fragilidade pessoal, para preservar a união dos filhos ou tentar resgatar a relação com o maridoNo escritório, atendo dezenas de clientes que têm motivos fortes e nobres para suportar o relacionamento extraconjugal do maridoNão acho correto a pessoa que já destruiu aquela família, em um momento de luto, pedir metade da pensão alimentíciaEsse tipo de vida dupla tende a acabar porque a mulher moderna não é tão dependente financeiramente do marido e já pode se separar e casar de novo com filhos sem se tornar malvista pela sociedadePara o homem, tornou-se mais difícil economicamente manter duas famílias e esconder o caso em tempos de internet e celular.”

Homens contam com tolerância

Na vida real, todos os direitos são negados à concubina, condenada moralmente pela sociedade patriarcalJá o homem, é quase enaltecido na sua masculinidadeÉ o caso, ou melhor dizendo, são os casos do motorista José da Silva, de Belo Horizonte, que aos 59 anos contabiliza 11 relacionamentos e está prestes a contrair o 12º“No passado, não ficava com uma mulher sóMantinha sempre duas: uma no estoque e a outra trabalhando”, confessa o homem, que passou por uma situação insólita.

Ele se tornou pai de dois filhos nascidos ao mesmo tempo, de mães diferentesEnquanto a oficial dava à luz um menino pela manhã na Maternidade Otaviano Neves, à tarde nascia a menina na Maternidade Odete ValadaresZé da Silva não acompanhou nenhum dos dois partos, pois estava no meio do expediente como motorista de ônibus.

Pai de 11 filhos, Zé da Silva faz enorme esforço de memória para listar todas as ex-mulheres na ordem e as idades dos filhos, alguns dos quais já perdeu contatoTampouco paga pensão“Eu era muito sem juízoVou tomar jeito”, juraApesar de ter se casado de papel passado uma única vez, cogita ficar mais quieto e está noivo da diarista Lúcia, de 43 anosEla aceitou o pedido sabendo que o noivo já morou durante um ano com a irmã dela, Kelly, de 23 anos“Para mim, tem que deitar beijando e acordar abraçadoSe o relacionamento começa a esfriar, eu largo”, diz ele, que tem entre seus atributos, o de ser o melhor dançarino de forró do Bairro São Francisco.

CONQUISTADOR


“Meu problema é o sofá, meu anjo…”, entrega o estofador Rodrigo Mário Machado Carneiro, que faz o tipo conquistador baratoAos 42 anos, ele tem dois ‘amores enjaulados’ atrás das grades da penitenciária de mulheres, no Bairro do HortoUma delas a mulher, Rosicléia, de 40 anos, com quem é casado há 22 anos e tem quatro filhos, condenada a um ano por furtoA outra é Milene, mais magra, com longos cabelos cacheadosVive com ele há 15 anos, tem três filhos e foi condenada a três anos pelo mesmo crime, segundo o amante“De boa mesmo? Amo as duasA Rosicléia é tudo na minha vida, mas a Milene também é importante”, diz.

Carneiro conheceu as duas mulheres na Praça Sete, quando ambas prestavam pequenos serviços a ele, que interceptava o produto dos furtos até ser preso e cumprir pena por assassinatoAo fazer a visita no dia marcado para as duas, o homem leva um amigo, que divide as honras de entregar alimentos, roupas e agrados às presas“Uma sabe da outra, mas a Milene aceita e a Rosicléia nãoSe ela souber que eu vim visitar a outra, ela mata a outra aí dentro”, diz ele, que ficou do lado de fora com a tarefa de cuidar dos sete filhos(