Jornal Estado de Minas

Mais uma geração está sob risco na Barraginha

Netos dos removidos da Vila Barraginha depois da tragédia de 1992 voltam a enfrentar o risco de deslizamento na Vila Itália. Município promete para este ano obra de estabilização

Flávia Ayer

Maura do Socorro, de 43 anos, sobreviveu à avalanche de 1992 e, grávida, conseguiu salvar um filho na fuga. Hoje, volta a ver crianças da família sob ameaça - Foto: Cristina Horta/EM/D.A Press

 

Na barra da saia de Maura do Socorro Francisco da Costa, de 43 anos, os três netinhos, os gêmeos de 2 anos e o bebê de 9 meses, nem imaginam o que a avó, mulher de expressão firme, já enfrentou na vidaGrávida de oito meses, ela carregou o filho no colo e fugiu sem olhar para trás, assim que as paredes de seu barraco começaram a cairTentou ir para a casa da mãe, mas já não havia mais casa, nem mãe, que acabou entre os 36 mortos na avalanche de terra de 1992 da Vila Barraginha, no Bairro Cidade Industrial, em Contagem, na Região Metropolitana de Belo HorizonteFaz 20 anos que Maura ganhou mais uma chance da vida, depois de salvar seu filho e sobreviver à tragédiaNa época, ela nem imaginava que voltaria a enfrentar esse risco.

A filha Priscila nasceu em um dos abrigos para os quais foram levadas 1,4 mil pessoas que perderam as moradias“Na hora do acidente, o barulho parecia de um estouro de boiadaMinha mãe morreu, minha família ficou toda machucadaNão conseguimos nos reestruturar até hojeNão tem jeito, todo dia você lembra o acidente”, conta Maura, novamente em situação de riscoEla faz parte de uma das 154 famílias levadas para a Vila Itália, no Bairro Fonte Grande, também em Contagem, e agora não prega os olhos com medo de o barraco descer morro abaixo“Antes, eram nossos filhos que viviam ameaçados

Agora, já são nossos netos”, lamenta.

As cenas do dia 18 de março de 1992 também não se apagam da lembrança de Berenice dos Santos, de 48, nem as marcas do acidente, do corpo da diarista, que ficou soterrada e perdeu um filho, na época com 2 anos“Estava com os meninos na sala e, de repente, subiu muita poeiraTranquei a casa e, de repente, as paredes se abriram e estava praticamente no telhado do meu vizinhoFiquei soterrada da cintura para baixoUm dos meus filhos morreuO outro teve traumatismo craniano”, lembraPor meses, Berenice precisou usar a cadeira de rodas e aprender a conviver com a saudade do caçula“Acho que o pior já passou”, diz, confiante em tempos melhores.

A Prefeitura de Contagem estima que haja 650 moradores atualmente na Vila Itália, parte deles vivendo em áreas invadidasDesde 2006, o Plano Municipal de Redução de Risco identificou áreas com perigo geológico na vilaSegundo a administração pública, está prevista para começar neste ano obra para contenção de encostas nas ruas 3, onde moram parte das vítimas da tragédia, e 6
“A obra ocorrerá no âmbito do Programa de Aceleração do Crescimento 2 (PAC 2), do governo federal, e já foi aprovada pela Caixa Econômica”, informa a prefeitura, em nota.

NO ALUGUEL
Uns com a casa em riscoOutros, sem casa própriaA Prefeitura de Contagem informa que 22 famílias vítimas da tragédia de 1992 vivem com o auxílio aluguelA aposentada Castorina Arruda de Sousa, de 60, que morava na Vila Barraginha desde 1968, não perdeu família nem bens materiaisMas, em terreno próximo à área do acidente, teve que abandonar seu barraco, por recomendação da prefeitura.

“Na época, fiquei 40 dias no abrigo e depois voltei para a BarraginhaTive que sair em 2000, pois falaram que minha casa estava em área de risco e, desde então, estou no aluguelGanho uma bolsa de R$ 315 e ainda tenho que inteirar quase R$ 200O jeito é fazer dívida, pois ganho só um salário mínimo”, lamenta, sem muitas expectativas“Todo ano dizem que meu apartamento vai sair no ano seguinte.”

DEPOIMENTO
Instinto de sobrevivência

Ney Soares Filho
Não esqueço aquele dia, por alguns motivosEra 18 de março, véspera do meu aniversárioO América venceu o Grêmio pela segunda vez na Série B, dando enorme passo para subir para a A, o que, de fato, ocorreriaMas, principalmente, pela cobertura da tragédiaTinha acabado de almoçar quando o rádio noticiou que, com a chuva, pelo menos 10 barracos tinham desabado na Vila Barraginha, em ContagemCheirou mal e resolvi correr para láAo chegar, porém, constatei que era muito pior do que poderia imaginarParecia ter havido um terremotoO aterro de uma construtora cedeu e, como a favela havia se instalado em solo argiloso, instável, a movimentação de terra simplesmente “revirou” o aglomerado, em um incrível efeito dominóBombeiros lutavam para arrancar pessoas do monte de escombros e lamaCom lágrimas nos olhos, um deles já carregava o corpo inerte de uma meninaMas, principalmente nas primeiras horas, muita gente era resgatada com vidaEstava difícil estimar o número de mortosFontes dos próprios bombeiros e da polícia falavam em centenas de soterrados, podendo passar de milAo fim de muitos dias de buscas, foram 36 mortosO que explica tal disparidade entre as primeiras estimativas e o total de vítimas? Primeiro, há que se considerar que num início de tarde muita gente estava fora, trabalhando, na escola ou resolvendo qualquer assuntoE, segundo, a força extra conferida às pessoas pelo tal instinto de sobrevivênciaSó assim para entender como uma pequena senhora octogenária conseguiu pular um muro, levando consigo uma neta de 6 anos, para escapar do desastreFoi apenas um dos muitos casos em que a vida conseguiu improvável vitória contra a morte.