Jornal Estado de Minas

A vida na lama de quem sobreviveu à enchente

Agricultor que perdeu a safra de manga e até a roupa do corpo em Guidoval é retrato de como a enchente afetou área rural da região

Jefferson da Fonseca Coutinho

Não tenho nem fala. É muita tristeza num tempo só - Antônio Rombaldi, 71 anos, lavrador - Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press

 

Quem é o homem absorto, sem sombra, que vaga em rua podre de lama e restos no vilarejo de Vargem Alegre, em Guidoval? De chapéu sob o céu acinzentado, braços inquietos, ele veste camisa do Brasil, calça social e, numa das mãos, tem guarda-chuva empenado, fechado; na outra, rádio de pilhas sujo de barro“É ‘seu’ Antônio, coitadoMoço, a gente tem de ajudar ele”, diz a mulher sofrida, Aparecida, de 50 anos, dona de casa empenhada em auxiliar o vizinho, que, como ela, perdeu até a roupa do corpo com o “tsunami” de lama que, nas primeiras horas de 2012, arruinou a pequena área rural da Zona da Mata‘Seu’ Antônio tem ao pé, igualmente perdido, gatinha branca encardida de orelhas negrasO bichinho o acompanha de um lado para o outro e, vez por outra, esfrega-se em suas botinas surradasO homem está parado diante de casinha destruída, na Rua Geraldo Marques da Silva, 58, com barro saindo pelas janelas‘Seu’ Antônio? “Sim”.

A ruela fede a manga estragada e bichos mortos em estado de decomposição Pelo chão, a sumir de vista, tonelada de manga ubá, perdida, vinda do depósito de frutas destruído à margem do Rio Xopotó, que seguiria para centrais de abastecimento de Minas Gerais e fábrica de suco de Astolfo Dutra, cidade vizinhaO homem, desolado, é retrato da melancolia que comove e aturde em GuidovalAntônio Rombaldi, de 71, de aparência bem mais envelhecida , lavrador, na tarde de 2 de janeiro foi salvo em bote improvisado por vizinhos voluntáriosCom a água a subir rapidamente pelo corpo franzino, viveu horas de desespero sobre telhado de barracão bambo, “balançando que nem caixote”

Aposentado, ainda lavrador, nascido em Miraí, havia acabado de enterrar a mulher, Alaíde de Almeida, que passou 18 dias em CTI, vítima de infarto.

- Foto: E o coração, seu Antônio? “Não tenho nem falaÉ muita tristeza num tempo só”, diz com a cabeça na capela mortuária João Paulo II, onde velou a companheira “Minha mulher, coitada, era muito ruim de ideiaToda vez que nascia um menino aqui em casa ela dizia que a gente tinha que darCinco eu consegui segurar, mas uma menina não teve jeito.” Com a fala confusa, olho azul como o da gatinha que tem aos pés, o homem reabre ferida antiga, quando a mulher deu uma de suas filhas para família do Rio de Janeiro“Ela foi com o nome de Eliesse, mas, lá no Rio, eles mudaram o nome delaEla foi com cinco meses, mas tem registro e tudo no cartório daquiEla deve ter uns 32 anos, por aíA gente não esquece e não perde a esperança de encontrar, né..a gente tá vivo”, suspira, tímido, pela boca miúda
Dona Aparecida ajuda a mudar de assunto e conta a história da gatinha de olho azul: “Bonitinha demais, não é? Tadinha, foi a única que sobrouNa enchente, a mãe dela se acabou com os cinco irmãozinhos”.



Aperto

O velho lavrador mantém o olhar longe em direção à casinha, cheia de lama, restos e históriaAli, com ele, morava uma das filhas que viu crescer, Eliene, de 34, mãe de sete criançasVolta ao assunto da família em pedaços: “Antes dos 15 anos, essa minha filha teve um menino Mas, hoje, só tem dois com elaOs outros ela deuNão pude fazer nada, porque estava muito doente e desempregado, passando por um aperto muito grande.” Diz que a filha, agora, é nova mulher, “de muita força”, e que trabalha ajudando a cuidar de idosos

Seu Antônio tem passado os últimos dias na casa da irmã, Maria, de 58, no Bairro Santana, a mais de uma hora dali, por passagem difícil, a péNum fio de esperança, conta que acaba de conseguir alugar uma casinha por R$ 160 na Vila Trajano, lugarejo mais próximo, para ele, a filha e os netos, Bruna, de 6, e Bruno, de 8Porém, não tem nada para colocar no barracãoO radinho e o guarda-chuva foram encontrados pelo caminho sem sombra, cheio de tristeza e destruiçãoDona Aparecida, de fé inabalável, pontua: “Ficou a vida, né!?”