Jornal Estado de Minas

Flanelinhas privatizam a região da Savassi, em BH

Depois de denúncias e de reação inicial da fiscalização, sensação de terra sem lei volta a reinar na região nobre, com extorsão de guardadores de carros e desrespeito de motoristas

Mateus Parreiras Landercy Hemerson

Espreitando em esquinas escuras, das quais surgem para interferir no tráfego, transformar em estacionamento áreas públicas em reforma ou extorquir quem precisa de vagas, os flanelinhas privatizaram o trânsito noturno dos quarteirões da Savassi, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte

Os espaços da área nobre, um dos símbolos da capital mineira, são regidos por esses “agentes paralelos” de trânsito, e acabam dominados para atender o seu lucroApesar de sucessivas denúncias, como as que vêm sendo publicadas pelo Estado de Minas desde quarta-feira, tudo ocorre à revelia da fiscalização da Polícia Militar e da Guarda Municipal, lentas demais para coibir abusos em tantos locaisOs desamandos foram constatados pelo EM em duas noites no fim de semanaQuando a PM finalmente age e aborda os clandestinos, que sequer usam colete de “licenciados”, descobre que muitas vezes são criminosos procurados travestidos de guardadores.

As corporações até circulam pela região e ampliaram a ação desde a semana passada, quando reportagem do Estado de Minas mostrou que os quarteirões fechados e em revitalização da Praça Diogo de Vasconcelos vinham sendo depredados e transformados em estacionamento clandestinoMas quem passa pela região à noite constata que a ocupação ilegal da praça é apenas o ponto alto de uma situação sem controle“A ausência do poder público é que possibilita esses constrangimentos à população e a apropriação do espaço públicoAs forças de segurança e de trânsito sabem e têm mapeadas essas ações, mas só agem pontualmente, permitindo que esses clandestinos atuem quando os fiscais vão embora”, avalia o especialista em segurança pública Robson Sávio Reis Souza, da organização não governamental Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

Na noite e na madrugada da sexta-feira e de sábado equipes do EM percorreram os quarteirões que compõem a Savassi e testemunharam o domínio dos guardadores de veículos e os abusos que cometemA situação é mais absurda no movimentado quarteirão da Rua Sergipe, entre as ruas Tomé de Souza e Antônio de AlbuquerqueAli, no lado esquerdo do sentido do fluxo, a placa de trânsito é clara: depois das 20h o estacionamento deixa de ser paralelo e passa a funcionar em 45°Medida para atender quem precisa parar o carro na área – onde há seis bares em apenas um quarteirão – sem prejudicar o tráfego na via de três faixas
Contudo, já às 18h30 os guardadores começam a organizar o estacionamento em 45°Sem fiscalização, sentem-se à vontade para garantir um lucro maior enfileirando o máximo de veículos possível, ainda antes do fim do happy hour de sábado, geralmente às 20h.

O “dono” do quarteirão ali é um rapaz alto, com touca, bigodes e fisionomia ameaçadoraAssim que um carro sai da vaga, ele orienta o próximo a manobrar e estacionar em 45°No momento da parada, ele se aproxima dos motoristas, a maioria jovens, casais de namorados e grupos de amigosQuando são homens, pede um “trocado” para vigiarCom mulheres e jovens mais franzinos, o tom da abordagem engrossa e o valor começa a ser estipulado“Deixa ‘dezinho’ (R$ 10) aí agora, que depois fica tranquilo quando você voltar”, insinua.

Ao estacionar os carros daquela forma, o guardador consegue alinhar 40 veículosQuase o dobro das 22 vagas de estacionamento paralelo que são permitidas até as 20hDo outro lado, onde o estacionamento é ao lado do meio fio, cabem 19 automóveis de passeioO movimento intenso e os públicos distintos permitem fazer um cálculo aproximado de quanto esses agentes ilegais podem faturar em pouco mais de seis horas, entre o início da noite e o começo da madrugada: quase R$ 900.

O movimento engrossa no fim da tarde, com o happy hour, seguido da chegada dos frequentadores de bares, a partir das 20h, e então, das 23h em diante, a movimentação de quem procura as boates da Tomé de Souza e da Antônio de Albuquerque
Para fazer uma estimativa do ganho desses agentes clandestinos, se cada vaga, durante a noite e a madrugada, for usada por três carros, e cada um pagar o mínimo, que gira em torno de R$ 5, o lucro dos donos daquela rua chegaria a R$ 885, com o manejo de 177 veículos.

Quando percebeu que a reportagem registrava o estacionamento em 45° uma hora e meia antes do determinado pela placa, o homem se aproxima e tenta intimidar: “Manda seu colega parar de ‘filmar’Aqui pode parar assim”, alega, tentando confundir.

A chuva fria da noite de sábado aumentou a ansiedade por um lugar para estacionar próximo a boates e baresMais combustível para a ganância dos guardadores, que passaram a oferecer até vagas de idosos e de pessoas portadoras de necessidades especiaisA “garantia”, segundo eles, é a sua própria presença, desde que satisfatoriamente remuneradosSe a BHTrans não aparece, a sensação do cliente é a de que o serviço do guardador é bomEle recebe, se já não tiver sido pago anteriormente, e as pessoas se veem estimuladas a prosseguir usando o serviço.

Na noite de sábado, porém, quem pagou adiantado ao guardador de carros para estacionar em vagas de deficientes, na Rua Antônio de Albuquerque, perdeu o dinheiro e não encontrou o carro na voltaO guincho da BHTrans passou pelos flanelinhas, lacrou as portas dos carros e os rebocou para o pátio, deixando para trás apenas um adesivo avisando sobre a remoçãoUma fiscalização pontual, insuficiente para resolver o problema

 

Resposta foi momentânea

A ação de flanelinhas, a falta de educação de motoristas e a omissão do poder público na Praça Diogo de Vasconcelos, na Savassi, antes mesmo do fim da reforma do espaço, foram mostradas a partir da última quarta-feira pelo EM, que divulgou fotos de fileiras de carros estacionados sobre os pisos recém-assentados dos quarteirões fechadosA Polícia Militar e a Guarda Municipal responderam nos dias seguintes, ocupando parte dos quarteirões e anotando infrações por toda regiãoDas 13h às 17h de quinta-feira, apenas o Batalhão de Polícia de Trânsito aplicou 246 multas (média de uma por minuto), principalmente por estacionamento irregularMas, no fim de semana, a fiscalização relaxou, os donos da rua se sentiram à vontade para agir e o desrespeito voltou a ocupar seu espaço.