Ele perdeu a conta de quantos criminosos ajudou a mandar para a cadeia desde os anos 1950 – parou de contar quando eram 200. Também não sabe dizer ao certo quantos advogados, promotores e juízes ajudou a formar. Ele é autor do livro Fundamentos do processo penal, lançado em 1981 e adotado em diversas faculdades do país. Aos 80 anos, o ex-procurador de Justiça do Estado de Minas Gerais Severino Flores se mantém na ativa à moda antiga, avesso aos computadores. O veterano homem da lei, com a cordialidade de bom mineiro, abriu as portas de seu apartamento no Bairro Buritis para o Estado de Minas e contou o que viveu nessas seis décadas dedicadas ao direito penal.
Do pequeno escritório com vista para a Região Oeste da capital mineira, montado no próprio apartamento, o professor despacha em dias de semana. Sábados e domingos, atua como administrador em pequena produção rural em Itabirito, a 70 quilômetros de BH. Seu último caso, sobre o qual está debruçado como assistente do Ministério Público, ainda promete dar o que falar. Severino trabalha para levar a júri três acusados, que respondem em liberdade, pelo assassinato em 2008 do ex-prefeito de Mariana João Ramos. “Esse processo se arrasta na Justiça. O que é doloroso para quem conhece, ama e acredita no direito. A lentidão nesse caso é mais uma demonstração de que a mais hedionda forma de injustiça é a própria morosidade da Justiça. Mas não perdemos a esperança de levar os réus – mandante e executores – a julgamento ainda este ano”, diz.
O advogado e professor aponta razões, suas velhas conhecidas, para a vagarosa Justiça brasileira. “É absoluta a imperfeição nos órgãos auxiliares, em que se nota sempre a insuficiência de recursos humanos. Faltam, especialmente, promotores, desembargadores e juízes.” Atento à desordem que assombra, lamenta o assassinato da juíza Patrícia Acioli, no mês passado em Niterói, no Rio de Janeiro. E diz que a execução da magistrada foi uma evidência da fragilidade da Justiça no Brasil. “É inacreditável que o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro não tenha mantido a segurança da juíza”, indigna-se.
Família
Antes de pontuar outros problemas também complexos, uma pausa para o café. É quando Severino deixa de lado o olhar e a oratória de doutor em direito penal – na teoria e prática – para dar lugar ao homem simples, bom marido e pai de família. “Mary, traz um pedaço de queijo para o moço.” Na parede do escritório, os retratos dos quatro filhos. Três bem encaminhados na vida. Um, aos 20 anos, ceifado pelo destino. Falar do rapaz, morto em acidente de trânsito, muda o azul-celeste dos olhos de Severino. “Foi em 8 de agosto de 1981. Infelizmente guardei a data. Perdi parte da minha vida. Não fosse o apoio incondicional da família, meu barco teria virado.”
Não demorou para o azul ganhar novo brilho. Bastou citar a companheira, Maria do Carmo, também advogada, presente na vida desde o namoro, iniciado em 1948. O casório foi em 1957. O bilhete de aniversário para a mulher, festejado no fim de agosto, ele ainda sabe de cor: “Mary, obrigado! Não sei o que seria da minha vida sem você”. Letra e papel acompanhados de belo buquê de orquídeas. “Todo ano envio flores para ela”, sorri, cúmplice, ao vê-la entrar com café em bandeja com queijo e biscoitos. “Meus filhos são lindos, parecidos com a mãe”, elogia.
Reconhecido por um condenado
Durante a conversa, Severino Flores conta um fato que viveu no passado. Ele estava em um táxi na Região da Pampulha, onde morou por 26 anos, e percebeu que o motorista o olhava um pouco diferente. “Ao fim da corrida, perguntou-me: ‘O senhor é o doutor Severino?’. ‘Sou’, respondi. ‘Aí ele me soltou esta: ‘o senhor me tacou num cadeião’”, disse o motorista. Mas depois, contou Severino, emendou que estava agradecido porque depois de ter cumprido a pena havia se tornado pai de família e estava feliz, trabalhando como taxista.
Satisfeito com o “caso raro, extremamente positivo”, o professor diz que o bom combate à violência e à criminalidade é aquele que se dá nas raízes do indivíduo. Bem melhor que a cadeia que funciona seria precisar cada vez menos dela. É na infância e na juventude, segundo Severino, que está a solução para médio e longo prazos. “Investimentos reais em educação e condições de trabalho, norteados pela justiça social, certamente, refletirão muito positivamente”, acredita o criminalista.
Para ele, o sistema prisional brasileiro está falido e não dá conta de cumprir seu papel. “São muitos os problemas. Faltam presídios adequados para o cumprimento da pena, com toda a assistência a que o condenado tem direito. O que vemos são penitenciárias que servem como depósitos de presos, de vidas humanas, que violaram a lei. Não se pode depositar uma pessoa. É preciso dar ao preso condições de trabalho interno, por exemplo, em colônias agrícolas, como ocorre em Neves.” E funciona, doutor? “Não, infelizmente. Não pela ideia, mas pela falta de fiscalização e de recursos humanos comprometidos com a verdadeira justiça”, conclui.
MEMÓRIA
Prefeito assassinado com quatro tiros
O caso que Severino está atuando hoje como assistente do Ministério Público aconteceu no dia 15 de maio de 2008, uma manhã de quinta-feira. O ex-prefeito de Mariana, Região Central de Minas, João Ramos Filho, foi assassinado com quatro tiros na rodovia MG-262, que liga o município a Ponte Nova. As investigações indicam que dois motociclistas pararam ao lado do carro de João Ramos e mandaram que o vidro fosse abaixado. Segundo a funcionária do posto de gasolina que pertencia ao ex-prefeito e que estava no carro com ele, os criminosos pediram dinheiro e mandaram que ela se abaixasse. Eles pegaram a bolsa da mulher e efetuaram quatro disparos. O ex-prefeito morreu na hora. João Ramos Filho pretendia concorrer ao cargo de prefeito novamente. Três acusados foram presos, mas, por meio de habeas corpus, obtiveram o benefício de responder ao processo em liberdade.
Conheça a história de um veterano homem da lei
Ex-procurador de Justiça de Minas e advogado criminalista há 60 anos, Severino Flores já ajudou a colocar pelo menos 200 bandidos na cadeia. E ele continua na ativa