Jornal Estado de Minas

Pedagoga mãe de dois filhos tenta se livrar do crack

Luciane Vidigal - Especial para o EM
Decidida a mudar sua história, M. relata a dependência: "Quando acaba a 'onda', você quer mais. É uma bola de neve: você fuma, tem a viagem, quer de novo, e mais e mais" - Foto: Marcos Michelin/EM/D.A Press
Ela é pedagoga, mãe de família, de classe média, culta, loira e bonita Amante de uma boa leitura, foi educadora e supervisora educacionalA condição financeira já lhe permitiu ser dona de fazendas e conhecer muitos lugares mundo aforaTudo posto em risco por uma viagem de poucos minutos“O problema do crack não é eleÉ a falta dele”, dispara M.B.PAos 47 anos, usuária há 15 anos na pedra considerada o veneno do século 21, ela já queimou mais de R$ 100 mil com o vício, que a fez largar as salas de aula, diante da incapacidade de continuar lecionando Há três anos, por causa dos filhos – dois, de 9 e 14 anos –, decidiu parar

Mas, há um mês, a fissura fez com que ela sucumbisseCom medo de outra recaída, 10 dias atrás bateu à porta do hospital do Instituto de Previdência dos Servidores do Estado de Minas Gerais (Ipsemg), na condição de servidora do estadoSem conseguir vaga no setor de Psquiatria, voltou para casa, em uma pequena cidade do Centro-Oeste de Minas


Nesta semana, retornou ao instituto, na esperança de um leito “Não é vícioÉ dependênciaO corpo pedeSerá que eu preciso estar drogada, usar o crack, para conseguir a ajuda?”, desabafou, indignada com a falta de estrutura para atendimento a dependentes químicosA internação só ocorreu na tarde de quarta-feira, depois que Mrelatou seu drama ao Estado de Minas, em um pedido desesperado de socorro

Os principais trechos desse enredo dramático, descritos abaixo, lançam um alerta sobre os efeitos devastadores de uma droga que há muito deixou de conhecer barreiras sociais para laçar suas vítimas


A descoberta da cocaína

“Meu primeiro contato com as drogas foi aos 20 e poucos anosComecei com cocaína e achava ótimo, porque com ela me sentia mais dinâmica, ia às festas, bebia, conversava, me sentia bem
Mas cheirei tanto que cheguei ao ponto de vender um piano-bar que tinha em Arraial D’Ajuda, na Bahia Hoje em dia muita gente cheira, principalmente aqueles com mais dinheiroEm bairros nobres daqui, na Região Centro-Sul de Belo Horizonte, tenho certeza de que são poucas as casas em que o pó nunca entrou”


A experiência com o crack

“Foi uma pedra para entrar no infernoExperimentei em uma festa, com amigos, e pronto: larguei o póVirei escrava do crackDurante 15 anos, fumei a droga, todos os diasSempre falo que a pedra é antissocial e careta: você não conversa, não sai de casa, fica no seu mundo, esquece de até escovar os dentes, não tem fomeO desleixo com a dependência é tanto que cheguei a perder dois dentes da frente, mas fiz implanteO problema não é o crack, é a falta delePorque quando acaba a ‘onda’, você quer maisÉ uma bola de neve: você fuma, tem a viagem, quer de novo, e quer mais e maisO maior impacto da droga é a primeira fumada Depois, é só a vontade de sentir aquela sensação de novo.”


Os efeitos na família

“Fumei na gravidez e quando amamentava os meus dois filhos, hoje com 9 e 14 anosEles não tiveram nada, graças a DeusOs médicos não sabiam disso Hoje, os meninos não sabem o que eu uso, mas desconfiam que há algo de errado em mimMeu ex-marido também foi usuário durante muitos anos, mas conseguiu pararNós nos separamos há um ano e meioÀs vezes, quando estava na ‘nóia’ (termo usado por viciados para descrever as alucinações provocadas pela droga), ficava em casa, em frente ao computador, durante horas, ou entrava no banheiro e fumavaSe um dos meus filhos me pedisse um leite, eu não tinha vontade de me levantar e ir buscarÉ horrível.”

A droga no trabalho

“Comecei até a fazer mestrado em psicanálise, mas não dei conta de continuarJá fui professora e supervisora do ensino fundamentalEm escolas públicas, o uso de droga é constanteOs garotos que vendiam eram meus alunosIa para a sala de aula sob o efeito do crack, e tinha dias que pagava alguém para lecionar no meu lugar, porque não dava contaJá cheguei a fumar dentro da escola, porque senti fissura e não teve jeito Hoje larguei a função de professora e supervisora, resolvi ficar dentro da biblioteca, porque posso ficar lendo, uma coisa que adoro.”


Tentativas de parar

“Decidi parar quando o meu caçula, na época com 6 anos, me pediu para ler um livro de historinhas para ele, antes de dormirLembro que estava em frente ao computador e que só fui ao quarto dele às 5h30, quando ele já tinha dormidoFoi quando resolvi buscar ajuda pela primeira vezMas não consegui pararTempos depois, ganhei um celular novinho, desses muito bem equipados, e troquei na drogaOutra vez resolvi parar”

Tratamentos e recaídas

“Para nós, mulheres, encontrar tratamento é dificílimoA maioria dos lugares é para homensE, quando há para nós, geralmente mistos, são poucos os que adiantamCheguei a ficar em clínica particular e a pagar R$ 1,5 mil por mêsMas não tem nada para fazerEles colocam você para capinar, isso não adiantaOs psicólogos são fracos e você acaba caindo de novo No Ipsemg, já fui três vezes, lá é muito bomConsegui ficar três anos sem fumarSentia vontade, mas conseguia driblar: é uma vigilância constanteOs remédios são pesadosHá um mês, me deu uma vontade louca de fumar uma pedraFumei umaE fiquei com medoA recaída passa a ser uma coisa íntima e, para ser bem sincera, quando vem, já é como uma velha conhecida”

Dinheiro queimado

“Já gastei muito dinheiroPara se ter uma ideia, gastava cerca de R$ 200 por dia para fumarUma pedrinha pode valer de R$ 5 até R$ 50, depende de quem vendeNo interior, é muito mais fácil vender e comprarJá gastei o equivalente a dois apartamentos, mais de R$ 100 milAgora quero ter minha vida de volta.”