Jornal Estado de Minas

Moradores denunciam presença de milícia no Aglomerado da Serra

Pedro Rocha Franco
Um esquema de milícia tão bem articulado quanto às instaladas em morros violentos do Rio de Janeiro. Denúncias dão conta de que, por trás do assassinato de Jeferson Coelho da Silva, de 17 anos, e de seu tio Renilson Veriano da Silva, de 39, na madrugada de sábado, se esconde um esquema montado por maus policiais militares para cobrança de propinas de traficantes em troca da livre atuação nos pontos de venda de drogas no maior conjunto de favelas de Belo Horizonte, o Aglomerado da Serra. Extraoficialmente, nomes de dois policiais que não participaram da execução foram confirmados como suspeitos de envolvimento em corrupção. Já um dos acusados de atirar em Jeferson e Renilson é ainda investigado pela Corregedoria da PM por outros quatro homicídios.
Veja as fotos do aglomerado nesta terça-feira

No dia seguinte ao fim de semana de conflito com a PM no aglomerado, moradores “cansados dos abusos” revelaram ao Estado de Minas o suposto esquema envolvendo policiais do Batalhão de Rondas Táticas Metropolitanas (Rotam) e do 22º Batalhão de Polícia Militar em matanças, agressões – inclusive com a possível existência de um grupo de extermínio – e tráfico e consumo de drogas. Num grave erro de percurso, segundo testemunhas, eles teriam executado sumariamente Jeferson e Renilson ao confundi-los com traficantes que comandam uma boca da região do Arara – um dos maiores pontos de venda de drogas numa das favelas que compõem o Aglomerado da Serra.

“Os quatro policiais do Rotam foram ao local cobrar a ‘caixinha’ da semana. A cada semana, depois do pagamento de R$ 1 mil, os donos das 17 ou 18 bocas ficam livres para traficar. Tudo sob a proteção de PMs. Na sexta-feira, a propina não foi paga, o que gerou revolta entre os militares. Depois de um desentendimento, os traficantes correram pelos becos e saíram da vista dos policiais. Na fuga, os militares se depararam com Jeferson e Renilson e os executaram”, relata o líder comunitário Paulo (nome fictício), que, com medo de retaliação, prefere não denunciar o esquema, instalado há mais de um ano e meio, diretamente à Secretaria de Estado de Defesa Social. “É falar e morrer”, diz.

Um tiro foi ouvido por moradores do aglomerado, que presenciaram das janelas a sequência de fatos que pode incriminar os quatro PMs. Em entrevista ao EM, a primeira testemunha ocular ouvida pela Polícia Civil no Departamento de Investigações de Homicídios e Proteção à Pessoa (DIHPP) confirmou que a história é bem diferente da relatada pelos militares, numa tentativa de proteger os acusados da execução. “Depois do primeiro disparo, Jeferson ainda estava vivo. Gemendo no chão, deu um último chamado. Gritou: ‘Mãe’”, relata Fabiana (nome fictício), que presenciou os fatos por 10 minutos da fresta da janela de casa. “Um dos PMs então lhe disse: ‘Você quer sua mãe? Toma’. E disparou mais uma vez nele”, recorda a mulher, lembrando que a vítima estava de barriga para cima.

Até então, ela só tinha conseguido ver uma pessoa baleada. Mas, segundo a mulher, um PM chamou reforço, via rádio, avisando que havia duas pessoas baleadas no aglomerado. Pouco depois, um policial a viu e disse: “Você quer morrer? Para dentro de casa agora. Quer morrer?”, recorda Fabiana, que, imediatamente, obedeceu à ordem, antes de ouvir mais dois tiros. “Foi uma covardia. Era um menino que não tinha maldade. Já vi muitas mortes na porta da minha casa, mas essa foi aterrorizante”, diz a testemunha.

Minutos depois do duplo assassinato, equipes da PM chegaram ao local para tentar ajudar a acobertar o caso. Um cabo do 22º Batalhão, identificado pelo apelido de “Cabeça de Repolho”, reconheceu o erro cometido pela guarnição do Rotam e, segundo o líder comunitário Paulo, disse: “Vocês fizeram a maior m… da vida. Desce com os corpos”, orientou o experiente militar. A recomendação era para que os policiais pusessem os corpos nos carros e os levassem para o hospital, simulando que as vítimas estariam somente feridas. Assim, evitariam o trabalho da perícia no local e teriam tempo suficiente para inventar uma história.

Antes disso, segundo o denunciante, “eles tiraram duas fardas de uma mochila que se encontrava na viatura e as usaram para incriminar as vítimas”. A partir de então, o tenente Clayton Santana, do Rotam, relatou à imprensa a versão que, entre 15 e 20 homens, armados e fardados como PMs, teriam atirado nos militares e que só revidaram. Mas, mesmo em número bem inferior – só quatro policiais –, apenas um tiro teria acertado um deles, e dois inocentes civis eram mortos. Além disso, nenhum dos outros 15 ou 20 bandidos foi preso.

Depois de conflitos com moradores revoltados com a execução de Jeferson e Renilson, o subcomandante do 22º Batalhão, major Luís José Francisco Filho, responsável pela operação no Aglomerado da Serra, o Rotam não estaria envolvido na ação, para evitar maiores confusões. Mas, segundo os dois denunciantes da comunidade, os militares subiram o morro pela parte de trás e desceram a Rua Bandoneon fazendo ameaças. “Eles gritaram com fuzil na mão: ‘Quem abrir a boca vai morrer. Nós vamos matar mesmo’”, relatou Paulo.

O chefe do Comando de Policiamento Especializado, tenente-coronel Antônio Carvalho, confirmou o afastamento dos quatro militares do Rotam acusados da execução de Jeferson e Renilson, enquanto as denúncias são investigadas. “A PM não quer encobrir nada e é preciso que se mostre isso à comunidade”, disse o oficial. Ele confirmou ainda que a antiga guarnição de um dos militares é investigada por outros quatro homicídios no Aglomerado da Serra, restando definir se a participação nos crimes foi direta ou indireta.