Atrair imprensa e chocar os clientes não é suficiente para os lançamentos das coleções de alta-costura. As grifes precisam colocar nas passarelas criações que o público presente não esperava ver. O toque de gênio deste ano parece ter ficado com Schiaparelli, cuja coleção foi anunciada tendo com tema “A divina comédia”, de Dante Alighieri, rebatizada como “Inferno”. Inspirada na obra de Dante, os modelos que apareceram na passarela chocaram os convidados e atingiram seu propósito de ser uma apresentação desconfortável. Nessa temporada, Daniel Roseberry foi além no surrealismo que já permeia o DNA da marca e trouxe vestidos com cabeças falsas – mas muito realistas – de animais, que foram criadas em vestidos e em um sobretudo poderoso desfilado por Naomi. A empresária Kylie Jenner usou o vestido mais sensacional do lançamento, com uma cabeça de leão feita de pelúcia e seda.
CHRISTIAN DIOR Dior foi mais contido, mas não menos diferente. Ao criar a coleção primavera-verão 2023, a diretora criativa da marca, Maria Grazia Chiuri, decidiu homenagear os gestos do trabalho artesanal como símbolo de unidade, personificado pela árvore da vida, um emblema que aparece em todos os looks, numa profusão de bordados, patchworks galão e ponto smock lúdico. Motivos vegetais aparecem nas costas de um casaco, na frente de um vestido longo de crepe preto ou em uma saia de algodão com acabamentos em toda a extensão. Expressando as reflexões da estilista sobre o folclore e a tradição, o tartan, uma homenagem à afeição do estilista fundador pelos tecidos típicos da moda masculina, floresce em conjuntos e vestidos de lã delicadamente plissados. Ícone atemporal da grife, o tailleur Bar é apresentado em uma versão arquitetônica inteiramente bordada com ponto smock ousado, enquanto a silhueta em jacquard reinterpreta o icônico modelo Miss Dior, criado por Christian Dior para sua linha Primavera-verão 1949, cravejado com flores evocando o estilo italiano millefiori num espírito folclórico que revisita diferentes iconografias. Numa coleção plural, uma ode singular à elegância.
Outro lance importante é que a inspiradora humana da marca foi a atriz Josephine Baker, destino dos sonhos para artistas, escritores e estilistas. Um ícone de elegância, ela personifica a modernidade da época, a transgressão de estereótipos e preconceitos, a mistura de culturas e experiências partilhadas que animaram especialmente o vibrante mundo do cabaré. Após obter a cidadania francesa, foi aclamada pela Europa pós-guerra e se apresentou no Strand Theatre e no Carnegie Hall, em Nova York,
As fotografias de Josephine Baker, cuja energia é enfatizada pela tonalidade em preto e branco, compõem uma forma de biografia indumentária (retratando-a como dançarina, artista, membro da Resistência Francesa, ativista dos direitos civis para afro-americanos, humanista e benfeitora universal), a história de uma pioneira, um exemplo. O camarim aconchegante e intimista que antecede sua entrada no palco é evocado por uma série de casacos lembrando o roupão, que oculta e protege. Confeccionados em veludo leve, franzido e dinâmico ou acolchoado, eles revelam peças de roupa interior em cetim leve que se transformam em protagonistas, em tons claros e preto, proporcionando uma interpretação contemporânea dos clássicos dos anos 1950.
A roupa desliza sobre o corpo e o acaricia. Em seda, em veludo, muitas vezes com efeito vincado e um ritmo sincopado, conferindo vitalidade ao tecido. O bordado é delicado, e pequenas tachas e lantejoulas prateadas ocupam o espaço e absorvem as luzes da passarela para refleti-las no público. Franjas em tons prateados e dourados acompanham e ampliam a coreografia dos movimentos esboçados pelo corpo. Os ternos e casacos homenageiam os tecidos tipicamente masculinos apreciados por Dior. O comprimento, sempre acima do tornozelo, revela sapatos com saltos e solas imponentes.
O cenário do desfile, projetado pela artista afro-americana Mickalene Thomas, homenageia mulheres negras e mestiças, como Josephine Baker, que evoluíram para figuras representativas poderosas quebrando barreiras raciais e lutando pelo que acreditam. Ela revela o significado profundo desta coleção e abala o conceito de alta-costura, a essência da moda que pode se tornar um gesto radical de consciência sobre seu próprio valor e força.
CHANEL Outra marca que não podia faltar é a Chanel, cuja diretora criativa, Viard, optou por uma direção animada para o desfile de alta-costura da casa de moda francesa, escalando junto com modelos animais estilizados e pesados feitos de papelão e madeira. Eles surgiram, um de cada vez, circulando as estátuas imponentes como mestres de cerimônias, ao lado de minissaias de líderes de torcida, macacões florais e casacos tweed cintilantes.
O look de abertura deu o tom – um casaco marfim de abotoamento duplo, com a franja emplumada de uma minissaia aparecendo abaixo.
Viard reduziu o supérfluo frequentemente associado à alta-costura, oferecendo principalmente silhuetas elegantes, com babados reduzidos a quando se trata de saias mais cheias, ou restringindo a paleta de cores em looks embelezados.
Uma estrutura em forma de elefante apareceu no final, e de lá saiu a noiva, em um vestido arejado de tule marfim que saía abaixo do joelho, combinado com botas douradas.