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Estado de Minas

Arte em todos os poros

2022 começou com um talento a menos. o diretor e produtor teatral Márcio Machado nos deixou no primeiro dia do ano


09/01/2022 04:00

Foto de Márcio Machado
O grande Márcio Machado (foto: Paulo Filgueiras/EM/D.A Press)

Márcio Machado era uma figura ímpar. Tinha um humor peculiar, uma capacidade de percepção e observação únicas, qualidades importantes para um artista, e principalmente para um diretor. Era vaidoso, e sempre escondeu sua idade, mas, segundo a família, tinha 74 anos.

Era um apaixonado pelas artes, em geral, mas foi o cinema que o aproximou de um grupo muito especial do Centro de Estudos Cinematográficos – CEC, onde conheceu Paulo Terra Caldeira, Eduardo Wense Dias e, mais tarde, João Alberto Duarte Lopes, que assumiu o nome artístico de Byan, e seguiu com Márcio para a carreira artística. “Conheci o Márcio no Cec, na década de 1960, e ficamos grandes amigos. O grupo aumentou, com colegas que tinham os mesmos interesses. Depois o Byan – que era meu amigo de infância, em Resplendor – se mudou para BH e o apresentei ao grupo, e ele se enturmou. Viajávamos muito. Desde cedo, o lado artístico do Márcio se despontava, ele gostava de todo tipo de arte. Éramos apaixonados por literatura e nas viagens discutíamos os livros que tínhamos lido e seus autores”, relembra Paulo, que decidiu fazer biblioteconomia e acabou influenciando o amigo Eduardo e, mais tarde, Márcio.

Mesmo antes de ingressar na carreira de diretor e produtor teatral (1972), Marcinho – como era tratado pelos amigos – foi convidado por Byan para ser o diretor artístico do desfile Barbarella, Bárbara e Bela, realizado em 6 de novembro de 1970, no Palácio das Mangabeiras, apadrinhado pela então primeira-dama do estado, dona Coraci, esposa do então governador Israel Pinheiro. O desfile foi um grande sucesso, viajou para São Paulo e Rio de Janeiro e chegou a ser apresentado no programa da Hebe Camargo.

Tudo começou quando o mineiro de Resplendor João Alberto Duarte Lopes – com o nome artístico Byan –, que já morava em BH e desenhava roupas e costurava, fez uma crítica ferrenha aos habituais trajes típicos usados pela Miss Minas Gerais no concurso de Miss Brasil. Vale lembrar que o colunista do Estado de Minas Nicolau Neto era o representante e coordenador de todo o concurso de miss no estado de Minas Gerais.

Na época, o traje típico das misses era o  de garimpeira, com um short de cetim. Edel Piroli era a responsável por ensinar etiqueta e passarela às misses, e  foi a porta-voz de Byan na sua crítica, que foi ouvida e aceita. A partir desse momento, coube a ele criar o novo traje típico. Era uma peça com bastante movimento, que trazia acessórios feitos de diferentes artesanatos de várias regiões do estado.

Sua pesquisa sobre o artesanato mineiro o levou ao Centro de Artesanato Mineiro, e o croqui do seu figurino impactou bastante a diretora do espaço, Léo Guimarães Alves, que levou a proposta de Byan à então presidente do Servas Coraci Uchoa Pinheiro, esposa do governador Israel Pinheiro. Dias depois, o estilista recebeu a notícia de que a primeira-dama do estado estava colocando à sua disposição transporte e acompanhamento aos artesãos, para que ela conseguisse tudo de que precisava.

Foto de Zora Santos
Zora Santos em seu primeiro desfile depois de ganhar o concurso

COLEÇÃO E DESFILE 

Nessas viagens pelo mundo do artesanato mineiro, Byan teve a ideia de fazer uma coleção para divulgar toda a pesquisa com esse trabalho que ele estava tendo contato e apreciando tanto. Dona Coraci aprovou o projeto e determinou que o desfile seria para a alta sociedade, no Palácio das Mangabeiras. Byan convidou o amigo Márcio Machado para fazer a direção artística do desfile, e Edel Piroli para a seleção e preparação das modelos.

“O desfile foi muito ousado para a época. Marcinho fez a direção artística, mas foi quase uma apresentação teatral, com músicas mineiras e performance das modelos. Não foi um simples desfile”, conta Edel. “Ele me orientou e me baseei nos musicais, porque os filmes da época eram, em sua maioria, musicais. As meninas faziam pose e tinham um gingado mais dançante, não desfilavam como fazem hoje, duras. E eram projetados slides (imagens) de cidades antigas mineiras. O desfile terminava com a declamação de um trecho do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles. O fim era 'dorme, meu menino, dorme, que o mundo vai se acabar. Vieram cavalos de fogo: são do Conde de Assumar. Dorme, meu menino, dorme, que Deus te ensine a lição dos que sofrem neste mundo violência e perseguição. Morreu Felipe dos Santos: outros, porém, nascerão' ”, relembra.

A coleção não ditava nenhuma tendência, mas apresentava uma moda bonita, usável, criativa e original. Afinal, o objetivo era valorizar o artesanato mineiro e mostrar que era possível usá-lo com bom gosto e elegância na roupa do dia a dia. Os modelos foram confeccionados com tecidos em tear manual, no mesmo processo usado para fazer colchas e tapetes, porém o processo foi usado para criar túnicas, echarpes, saias de praia em comprimentos variados. As bijuterias e pratarias de Tiradentes complementavam as produções.

Depois de longa pesquisa, e com a coleção praticamente pronta, Byan teve que correr contra o tempo e mudar algumas peças porque foi surpreendido com o “boom” da maxissaia. A imprensa rendeu louvores ao estilista mineiro, que conseguiu criar uma moda regional, bonita, com pouquíssima influência externa. Além das peças em tear, o tecido mais usado foi o algodão rústico. Alguns modelos receberam aplicações em couro, trabalho inspirado nas selas e arreios de cavalos. Destaque para um colete franjado feito de medalhas de prata, diferente de tudo o que já existiu na época. Entre as peças que chamaram a atenção estava uma calça mídi, com suspensórios, feita em lã grossa, tipo manta. Na modelagem, muita manga japonesa.

Naquela época, nada era pequeno. A ideia nasceu em junho, o desfile foi marcado para novembro. Quase pronto, decidiram fazer um concurso no programa do Sérgio Bittencourt, na TV Itacolomi, para escolher uma manequim negra para o desfile no Palácio das Mangabeiras. A grande vencedora foi Zora Santos, que teve a missão de abrir o desfile.

“Eu estudava no Ginásio Cruz Vermelha, onde hoje é o hospital. Tinha 17 anos e fazia a terceira série do ginásio. Minhas colegas ficaram sabendo do concurso e me inscreveram escondido porque eu era muito alta e a palhaça da sala. Só me contaram no dia em que tinha que estar lá. Fui de uniforme com as colegas e não sabia direito o que era. O concurso durou umas três ou quatro semanas. Era uma versão mineira do programa do Flávio Cavalcanti. Passei pelas duas primeiras etapas; na terceira, uma boutique da Serra me ofereceu a roupa. O prêmio final era participar do desfile do Byan e um curso de modelo com a Edel Piroli. Isso mudou minha trajetória de vida completamente. O desfile foi uma coisa enorme. Trabalhei com o saudosíssimo Márcio Machado, e foi a carreira de modelo e o Marcinho que me levaram para o teatro”, conta. Zora Santos pisou na passarela e marcou presença usando uma malha preta e estava coberta de joias artesanais em prata de Tiradentes, e cintos artesanais.

Dois anos depois, Márcio Machado começa a dirigir e produzir peças de teatro profissionais. O primeiro espetáculo de Márcio Machado foi a peça “Pluft, o fantasminha”, que contou com figurinos de Byan. A primeira peça que Zora atuou foi com direção de Márcio Machado e com texto e figurino de Estergilda Menicucci, chamada “A incrível Borboleta Azul”, que estreou no Teatro Marília. Depois foi trabalhar com José Mayer e Alcione Araújo,  se mudou para o Rio de Janeiro e atualmente está de volta à capital mineira, onde continua a atuar como atriz. Já está ensaiando seu próximo trabalho, a peça “Ano que vem eu vou”. Ao lado de Alysson Vaz, de quem foi sócio por décadas, Márcio Machado produziu uma infinidade de espetáculos. Era o mestre da comédia e do teatro de revista. Um apaixonado por Carmem Miranda, sempre que podia colocava a figura da emblemática artista em seus espetáculos, fosse no cenário ou na performance de algum artista, em uma homenagem declarando oficialmente sua grande admiração.

Foto de João Alberto Duarte Lopes
João Alberto Duarte Lopes, o Byan (foto: Arquivo pessoal)

Minha trajetória com Márcio

João Alberto Duarte Lopes (Byan)

Conheci o Márcio Machado logo que me mudei para Belo Horizonte, em 1964. Quem nos apresentou foi o Paulo Caldeira, um amigo de Resplendor que se mudou antes de mim para BH. Nos encontrávamos diariamente para falar sobre arte.

O Márcio terminou a faculdade e continuou leitor e espectador assíduo; chegou a escrever críticas sobre cinema e dirigiu espetáculos amadores em escolas de Belo Horizonte. Paulo seguiu carreira acadêmica, fez mestrado e doutorado e se tornou professor da UFMG, profundo conhecedor de obras de arte e consultor na área para importantes bibliotecas. Fez curadoria de relevantes exposições de arte contemporânea brasileira.

Quando vim pra BH, a tendência para a moda ficou latente. Comprei uma máquina de costura. Meu pai era alfaiate e minha mãe costureira, sou desenhista e pintor de quadros, e desde que me entendo por gente costurava para as pessoas da família. Adotei o nome Byan e fui trabalhar como figurinista em uma loja de tecidos e costurando em casa para as clientes da loja.

Conheci Nicolau Neto e a experiente Edel Piroli, que ensinava etiqueta social, postura e andamento para as candidatas a miss. Entrei em um mundo novo. Comecei a falar com a Edel do quanto me incomodava o traje típico que a Miss Minas Gerais desfilava no Concurso Miss Brasil, sempre “fantasiada” de garimpeira, com short de cetim. Certo dia, Edel pediu para eu desenhar um modelo que achava ideal, que o mostraria ao Nicolau. O colunista amou e autorizou que eu produzisse o traje, que a coluna daria de presente à vencedora para usar no concurso nacional.
Regina Reis no Palácio das Mangabeiras
Regina Reis desfilando no Palácio das Mangabeiras (foto: Arquivo pessoal)

Para construir o traje, fui com o desenho ao Centro de Artesanato Mineiro, e a diretora Léo Guimarães Alves ficou bastante impressionada e levou minha proposta para a então presidente do Servas, dona Coraci Uchoa Pinheiro, que colocou toda a estrutura de acesso aos artesãos à minha disposição. Em 1969, a Miss Araguari desfilou com o traje típico que representava o artesanato mineiro. A roupa trazia acessórios de artesanatos de diversas regiões do estado. No ano seguinte, fiz o figurino da nova miss, e como ela ganhou o concurso nacional, também assinei o traje usado no Miss Universo.

Edel Piroli se tornou minha cliente e amiga, me apresentou ao seu círculo de amizades, inclusive à editora do Caderno Feminino e colunista social Anna Marina Siqueira, que reconheceu o meu trabalho e por várias vezes abriu espaço em seu caderno para divulgar meu trabalho.

Com as viagens com a Léo, conheci trabalhos artesanais maravilhosos e minha cabeça viajou. Enxerguei uma coleção inteira feita a partir do aproveitamento daqueles trabalhos, ou a partir daquelas ideias. Eram desenhos, materiais rústicos, processos milenares e histórico de influências distintas no tempo e espaço da história.

Levei a ideia da coleção para dona Coraci, que abraçou a ideia. O governo ofereceu um coquetel no salão nobre do Palácio da Liberdade para me apresentar e o projeto, e abriu o Palácio das Mangabeiras para o desfile. Convidei Mário Machado para fazer a direção artística do desfile e Edel cuidava das modelos. O nome da coleção e do desfile: Barbarella, Bárbara e Bela.

Márcio Machado, Cleide Gosling e Isabela
Márcio Machado, Cleide Gosling e Isabela %u2013 Baile dos Artistas (1994) (foto: Arquivo pessoal)

Márcio e eu

Conheci o Marcinho em 1982, cerca de 15 dias antes da estreia do “Showçaite”, que sempre era em junho. Sempre amei teatro, participava de um grupo amador. Todos os anos, o colunista Eduardo Couri ligava para minha mãe perguntando se ninguém lá de casa gostaria de participar. A resposta era sempre a mesma: não. Mas, nesse ano, achei que seria uma boa oportunidade e pedi que ela ligasse para o Eduardo pedindo para me colocar no elenco.

Fico pensando o aperto que ele passou. Educado como era, não teve coragem de dizer que estava em cima da hora. Disse sim, e jogou o rabo de foguete para o diretor Márcio Machado, que nunca tinha me visto na vida. Inventaram dois quadros para me colocar. O primeiro era uma ponta, literalmente. Eu ia ficar no fundo de um esquete do Mário Fontana, só para arrumar a cena para ele, a cada entrada. A história era um comercial de uísque, na época da TV ao vivo, que tinha que ser repetido várias vezes ao dia. O artista (Fontana) tinha que beber, e ia ficando de fogo ao longo do dia. Eu arrumava a mesa para a próxima inserção e também dava um gole no uísque e ia ficando bêbada.

Na época, tinha ensaio para os censores da Polícia Federal. Eles eram seriíssimos, não esboçavam nenhuma reação. Quando começamos o esquete eles começaram a rir muito. Todo mundo levou susto, principalmente o Márcio. Quando acabou, ele chegou perto de mim, com aquele sorriso contido dele, com a mão tapando a boca e disse: “Você é danadinha”.

Antes mesmo da estreia do “Showçaite”, ele me convidou para participar de uma peça que estava montando para agosto, “Brasil, mame-o ou deixe-o”. Foi meu primeiro trabalho profissional, depois fizemos “Velório à brasileira”. Convivi com ele muitos anos. Sempre firme, sem perder a educação e delicadeza, falava tudo que queria na maior sinceridade.

Lembro-me de um dia que tí- nhamos marcado um sessão extra, no domingo, às 18h. Eu equeci completamente. Lembrei-me em cima da hora, corri para o teatro e pisei no palco já com as cortinas abrindo. Depois, perguntei aos meus colegas por que ninguem tinha me ligado. A resposta foi uma só: “Marcinho não deixou, disse que o artista tem que ter responsabilidade, que faríamos o espetáculo sem você”.

Era um craque na comédia. Não me esqueço de ele falando “olha o timing”. Aprendi muito com ele. (ITC)


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