Jornal Estado de Minas

Arte em todos os poros


Márcio Machado era uma figura ímpar. Tinha um humor peculiar, uma capacidade de percepção e observação únicas, qualidades importantes para um artista, e principalmente para um diretor. Era vaidoso, e sempre escondeu sua idade, mas, segundo a família, tinha 74 anos.

Era um apaixonado pelas artes, em geral, mas foi o cinema que o aproximou de um grupo muito especial do Centro de Estudos Cinematográficos – CEC, onde conheceu Paulo Terra Caldeira, Eduardo Wense Dias e, mais tarde, João Alberto Duarte Lopes, que assumiu o nome artístico de Byan, e seguiu com Márcio para a carreira artística. “Conheci o Márcio no Cec, na década de 1960, e ficamos grandes amigos. O grupo aumentou, com colegas que tinham os mesmos interesses. Depois o Byan – que era meu amigo de infância, em Resplendor – se mudou para BH e o apresentei ao grupo, e ele se enturmou. Viajávamos muito. Desde cedo, o lado artístico do Márcio se despontava, ele gostava de todo tipo de arte.
Éramos apaixonados por literatura e nas viagens discutíamos os livros que tínhamos lido e seus autores”, relembra Paulo, que decidiu fazer biblioteconomia e acabou influenciando o amigo Eduardo e, mais tarde, Márcio.

Mesmo antes de ingressar na carreira de diretor e produtor teatral (1972), Marcinho – como era tratado pelos amigos – foi convidado por Byan para ser o diretor artístico do desfile Barbarella, Bárbara e Bela, realizado em 6 de novembro de 1970, no Palácio das Mangabeiras, apadrinhado pela então primeira-dama do estado, dona Coraci, esposa do então governador Israel Pinheiro. O desfile foi um grande sucesso, viajou para São Paulo e Rio de Janeiro e chegou a ser apresentado no programa da Hebe Camargo.

Tudo começou quando o mineiro de Resplendor João Alberto Duarte Lopes – com o nome artístico Byan –, que já morava em BH e desenhava roupas e costurava, fez uma crítica ferrenha aos habituais trajes típicos usados pela Miss Minas Gerais no concurso de Miss Brasil. Vale lembrar que o colunista do Estado de Minas Nicolau Neto era o representante e coordenador de todo o concurso de miss no estado de Minas Gerais.

Na época, o traje típico das misses era o  de garimpeira, com um short de cetim. Edel Piroli era a responsável por ensinar etiqueta e passarela às misses, e  foi a porta-voz de Byan na sua crítica, que foi ouvida e aceita. A partir desse momento, coube a ele criar o novo traje típico. Era uma peça com bastante movimento, que trazia acessórios feitos de diferentes artesanatos de várias regiões do estado.

Sua pesquisa sobre o artesanato mineiro o levou ao Centro de Artesanato Mineiro, e o croqui do seu figurino impactou bastante a diretora do espaço, Léo Guimarães Alves, que levou a proposta de Byan à então presidente do Servas Coraci Uchoa Pinheiro, esposa do governador Israel Pinheiro. Dias depois, o estilista recebeu a notícia de que a primeira-dama do estado estava colocando à sua disposição transporte e acompanhamento aos artesãos, para que ela conseguisse tudo de que precisava.

Zora Santos em seu primeiro desfile depois de ganhar o concurso - Foto:
COLEÇÃO E DESFILE 

Nessas viagens pelo mundo do artesanato mineiro, Byan teve a ideia de fazer uma coleção para divulgar toda a pesquisa com esse trabalho que ele estava tendo contato e apreciando tanto.
Dona Coraci aprovou o projeto e determinou que o desfile seria para a alta sociedade, no Palácio das Mangabeiras. Byan convidou o amigo Márcio Machado para fazer a direção artística do desfile, e Edel Piroli para a seleção e preparação das modelos.

“O desfile foi muito ousado para a época. Marcinho fez a direção artística, mas foi quase uma apresentação teatral, com músicas mineiras e performance das modelos. Não foi um simples desfile”, conta Edel. “Ele me orientou e me baseei nos musicais, porque os filmes da época eram, em sua maioria, musicais. As meninas faziam pose e tinham um gingado mais dançante, não desfilavam como fazem hoje, duras. E eram projetados slides (imagens) de cidades antigas mineiras. O desfile terminava com a declamação de um trecho do “Romanceiro da Inconfidência”, de Cecília Meireles.
O fim era 'dorme, meu menino, dorme, que o mundo vai se acabar. Vieram cavalos de fogo: são do Conde de Assumar. Dorme, meu menino, dorme, que Deus te ensine a lição dos que sofrem neste mundo violência e perseguição. Morreu Felipe dos Santos: outros, porém, nascerão' ”, relembra.

A coleção não ditava nenhuma tendência, mas apresentava uma moda bonita, usável, criativa e original. Afinal, o objetivo era valorizar o artesanato mineiro e mostrar que era possível usá-lo com bom gosto e elegância na roupa do dia a dia. Os modelos foram confeccionados com tecidos em tear manual, no mesmo processo usado para fazer colchas e tapetes, porém o processo foi usado para criar túnicas, echarpes, saias de praia em comprimentos variados. As bijuterias e pratarias de Tiradentes complementavam as produções.

Depois de longa pesquisa, e com a coleção praticamente pronta, Byan teve que correr contra o tempo e mudar algumas peças porque foi surpreendido com o “boom” da maxissaia. A imprensa rendeu louvores ao estilista mineiro, que conseguiu criar uma moda regional, bonita, com pouquíssima influência externa. Além das peças em tear, o tecido mais usado foi o algodão rústico. Alguns modelos receberam aplicações em couro, trabalho inspirado nas selas e arreios de cavalos.
Destaque para um colete franjado feito de medalhas de prata, diferente de tudo o que já existiu na época. Entre as peças que chamaram a atenção estava uma calça mídi, com suspensórios, feita em lã grossa, tipo manta. Na modelagem, muita manga japonesa.

Naquela época, nada era pequeno. A ideia nasceu em junho, o desfile foi marcado para novembro. Quase pronto, decidiram fazer um concurso no programa do Sérgio Bittencourt, na TV Itacolomi, para escolher uma manequim negra para o desfile no Palácio das Mangabeiras. A grande vencedora foi Zora Santos, que teve a missão de abrir o desfile.

“Eu estudava no Ginásio Cruz Vermelha, onde hoje é o hospital. Tinha 17 anos e fazia a terceira série do ginásio. Minhas colegas ficaram sabendo do concurso e me inscreveram escondido porque eu era muito alta e a palhaça da sala. Só me contaram no dia em que tinha que estar lá. Fui de uniforme com as colegas e não sabia direito o que era.
O concurso durou umas três ou quatro semanas. Era uma versão mineira do programa do Flávio Cavalcanti. Passei pelas duas primeiras etapas; na terceira, uma boutique da Serra me ofereceu a roupa. O prêmio final era participar do desfile do Byan e um curso de modelo com a Edel Piroli. Isso mudou minha trajetória de vida completamente. O desfile foi uma coisa enorme. Trabalhei com o saudosíssimo Márcio Machado, e foi a carreira de modelo e o Marcinho que me levaram para o teatro”, conta. Zora Santos pisou na passarela e marcou presença usando uma malha preta e estava coberta de joias artesanais em prata de Tiradentes, e cintos artesanais.

Dois anos depois, Márcio Machado começa a dirigir e produzir peças de teatro profissionais. O primeiro espetáculo de Márcio Machado foi a peça “Pluft, o fantasminha”, que contou com figurinos de Byan. A primeira peça que Zora atuou foi com direção de Márcio Machado e com texto e figurino de Estergilda Menicucci, chamada “A incrível Borboleta Azul”, que estreou no Teatro Marília. Depois foi trabalhar com José Mayer e Alcione Araújo,  se mudou para o Rio de Janeiro e atualmente está de volta à capital mineira, onde continua a atuar como atriz. Já está ensaiando seu próximo trabalho, a peça “Ano que vem eu vou”. Ao lado de Alysson Vaz, de quem foi sócio por décadas, Márcio Machado produziu uma infinidade de espetáculos. Era o mestre da comédia e do teatro de revista. Um apaixonado por Carmem Miranda, sempre que podia colocava a figura da emblemática artista em seus espetáculos, fosse no cenário ou na performance de algum artista, em uma homenagem declarando oficialmente sua grande admiração.

João Alberto Duarte Lopes, o Byan - Foto: Arquivo pessoal
Minha trajetória com Márcio

João Alberto Duarte Lopes (Byan)

Conheci o Márcio Machado logo que me mudei para Belo Horizonte, em 1964. Quem nos apresentou foi o Paulo Caldeira, um amigo de Resplendor que se mudou antes de mim para BH. Nos encontrávamos diariamente para falar sobre arte.

O Márcio terminou a faculdade e continuou leitor e espectador assíduo; chegou a escrever críticas sobre cinema e dirigiu espetáculos amadores em escolas de Belo Horizonte. Paulo seguiu carreira acadêmica, fez mestrado e doutorado e se tornou professor da UFMG, profundo conhecedor de obras de arte e consultor na área para importantes bibliotecas. Fez curadoria de relevantes exposições de arte contemporânea brasileira.

Quando vim pra BH, a tendência para a moda ficou latente. Comprei uma máquina de costura. Meu pai era alfaiate e minha mãe costureira, sou desenhista e pintor de quadros, e desde que me entendo por gente costurava para as pessoas da família. Adotei o nome Byan e fui trabalhar como figurinista em uma loja de tecidos e costurando em casa para as clientes da loja.

Conheci Nicolau Neto e a experiente Edel Piroli, que ensinava etiqueta social, postura e andamento para as candidatas a miss. Entrei em um mundo novo. Comecei a falar com a Edel do quanto me incomodava o traje típico que a Miss Minas Gerais desfilava no Concurso Miss Brasil, sempre “fantasiada” de garimpeira, com short de cetim. Certo dia, Edel pediu para eu desenhar um modelo que achava ideal, que o mostraria ao Nicolau. O colunista amou e autorizou que eu produzisse o traje, que a coluna daria de presente à vencedora para usar no concurso nacional.
Regina Reis desfilando no Palácio das Mangabeiras - Foto: Arquivo pessoal
Para construir o traje, fui com o desenho ao Centro de Artesanato Mineiro, e a diretora Léo Guimarães Alves ficou bastante impressionada e levou minha proposta para a então presidente do Servas, dona Coraci Uchoa Pinheiro, que colocou toda a estrutura de acesso aos artesãos à minha disposição. Em 1969, a Miss Araguari desfilou com o traje típico que representava o artesanato mineiro. A roupa trazia acessórios de artesanatos de diversas regiões do estado. No ano seguinte, fiz o figurino da nova miss, e como ela ganhou o concurso nacional, também assinei o traje usado no Miss Universo.

Edel Piroli se tornou minha cliente e amiga, me apresentou ao seu círculo de amizades, inclusive à editora do Caderno Feminino e colunista social Anna Marina Siqueira, que reconheceu o meu trabalho e por várias vezes abriu espaço em seu caderno para divulgar meu trabalho.

Com as viagens com a Léo, conheci trabalhos artesanais maravilhosos e minha cabeça viajou. Enxerguei uma coleção inteira feita a partir do aproveitamento daqueles trabalhos, ou a partir daquelas ideias. Eram desenhos, materiais rústicos, processos milenares e histórico de influências distintas no tempo e espaço da história.

Levei a ideia da coleção para dona Coraci, que abraçou a ideia. O governo ofereceu um coquetel no salão nobre do Palácio da Liberdade para me apresentar e o projeto, e abriu o Palácio das Mangabeiras para o desfile. Convidei Mário Machado para fazer a direção artística do desfile e Edel cuidava das modelos. O nome da coleção e do desfile: Barbarella, Bárbara e Bela.

Márcio Machado, Cleide Gosling e Isabela %u2013 Baile dos Artistas (1994) - Foto: Arquivo pessoal
Márcio e eu

Conheci o Marcinho em 1982, cerca de 15 dias antes da estreia do “Showçaite”, que sempre era em junho. Sempre amei teatro, participava de um grupo amador. Todos os anos, o colunista Eduardo Couri ligava para minha mãe perguntando se ninguém lá de casa gostaria de participar. A resposta era sempre a mesma: não. Mas, nesse ano, achei que seria uma boa oportunidade e pedi que ela ligasse para o Eduardo pedindo para me colocar no elenco.

Fico pensando o aperto que ele passou. Educado como era, não teve coragem de dizer que estava em cima da hora. Disse sim, e jogou o rabo de foguete para o diretor Márcio Machado, que nunca tinha me visto na vida. Inventaram dois quadros para me colocar. O primeiro era uma ponta, literalmente. Eu ia ficar no fundo de um esquete do Mário Fontana, só para arrumar a cena para ele, a cada entrada. A história era um comercial de uísque, na época da TV ao vivo, que tinha que ser repetido várias vezes ao dia. O artista (Fontana) tinha que beber, e ia ficando de fogo ao longo do dia. Eu arrumava a mesa para a próxima inserção e também dava um gole no uísque e ia ficando bêbada.

Na época, tinha ensaio para os censores da Polícia Federal. Eles eram seriíssimos, não esboçavam nenhuma reação. Quando começamos o esquete eles começaram a rir muito. Todo mundo levou susto, principalmente o Márcio. Quando acabou, ele chegou perto de mim, com aquele sorriso contido dele, com a mão tapando a boca e disse: “Você é danadinha”.

Antes mesmo da estreia do “Showçaite”, ele me convidou para participar de uma peça que estava montando para agosto, “Brasil, mame-o ou deixe-o”. Foi meu primeiro trabalho profissional, depois fizemos “Velório à brasileira”. Convivi com ele muitos anos. Sempre firme, sem perder a educação e delicadeza, falava tudo que queria na maior sinceridade.

Lembro-me de um dia que tí- nhamos marcado um sessão extra, no domingo, às 18h. Eu equeci completamente. Lembrei-me em cima da hora, corri para o teatro e pisei no palco já com as cortinas abrindo. Depois, perguntei aos meus colegas por que ninguem tinha me ligado. A resposta foi uma só: “Marcinho não deixou, disse que o artista tem que ter responsabilidade, que faríamos o espetáculo sem você”.

Era um craque na comédia. Não me esqueço de ele falando “olha o timing”. Aprendi muito com ele. (ITC)
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