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Estado de Minas entrevista/Marcos Almeida Magalhães Andrade - 72 anos, Médico cardiologista

Dedicação e competência

O cardiologista Marcos Andrade completa 50 anos de formado como exemplo de profissional que tem como foco disciplina, empenho, estudo e respeito pelo paciente


28/11/2021 04:00

Médico
Marcos Almeida Magalhães Andrade (foto: Ramon Lisboa/EM/D.A Press)


Responsável, comprometido, empenhado, disciplinado. Características fortes que acompanham Marcos Andrade desde sua infância. Quando tinha dois anos, perdeu o pai – piloto da FAB – em um acidente aéreo. Ficou com sua mãe, Luiza, uma jovem de 20 anos e a irmã Cristina, de apenas 1 mês de vida. Cresceu ouvindo que agora era o homem da casa e que teria que cuidar da irmã. Isso se tornou verdade absoluta, cresceu cuidando e ajudando o outro e isso levou à escolha pela medicina, que sempre exerceu com muita dedicação, estudo e amor. Só quem é ou foi seu cliente, ou desfruta de sua intimidade conhece o lado descontraído e engraçado dessa tímida pessoa que tem um grande amor por seus pacientes e se tornou um dos mais importantes e competentes profissionais de sua área. Acaba de receber o diploma de Honra ao Mérito da Associação Médica, Conselho Regional de Medicina e Sindicato dos Médicos de Minas Gerais em Reconhecimento ao seu grande valor profissional e aos serviços prestados à comunidade nesses 50 anos
 
O que te levou a escolher medicina?
Desde muito cedo fui treinado para apoiar e ajudar as pessoas. Meu pai morreu muito cedo e minha mãe dizia que eu tinha que ajudar minha irmãzinha. Desde os 3 anos passei a ser responsável pelo outro. Depois de oito anos, minha mãe se casou novamente e teve quatro filhos e eu era cobrado e responsabilizado pelo cuidado com meus irmãos. Eu chamava a atenção, colocava de castigo. Tanto meu pai quanto meu padastro eram militares, e eles ganhavam muito pouco na época. Estudei no colégio Dom Silvério, mas lá era caro, e quando fui fazer prova de admissão fiz também no Colégio Militar, que era muito bom também e era gratuito. Algumas pessoas achavam que eu seria padre, porque eu era muito certinho. O Dom Silvério fez uma proposta para minha mãe. Se eu tivesse média nove no ano, o ano seguinte seria gratuito. Mas fiquei com medo de não conseguir e preferi ir para o colégio Militar, que além do estudo também dava alimentação e uniforme. Foi muito bom para mim, porque era muito tímido e eles me ajudaram bastante nesse ponto. Aprendi a gostar de gente. Ficou claro que eu iria para área de humanas. Sempre fui estudioso, responsável, concentrado e focado. Tive um professor de história que lançou o caderno nobre, onde fazíamos um sumário do livro que tínhamos lido, para treinar capacidade de compreensão e síntese. Ter essa capacidade de compreensão e síntese e mais disciplina e organização são fundamentais na medicina. Nunca deixei um paciente meu esperando.

Aprendeu isso na prática?
Aprendemos muito com nossos erros, e com os erros dos outros. Melhor quando é com o do outro. Quando me formei fui trabalhar com o dr. José Vieira Mendonça Filho, que era um gênio, aprendi muito com ele. Tinha uma faceta interessante. Sua clientela era a nata da cidade e adorava deixar a sala de espera cheia para as pessoas verem umas às outras. Tinha uma capacidade espetacular de envolver as pessoas. Ficavam esperando de três a quatro horas. Aprendi que aquela não era a melhor forma de manter uma clínica ativa. Não deixo um paciente esperar. Ele começava a ronda residencial à meia noite, e eu ia com ele. Passávamos a madrugada visitando clientes. Terminávamos quando o dia estava amanhecendo, e eu tinha plantão às 7h.

Por que escolheu cardiologia?
O sistema circulatório é muito dinâmico e mais integrador de todos. Tem um raciocínio lógico muito interessante. É uma estrutura muito organizada e fácil de entender. Isso me fascina,  tem tudo a ver com minha personalidade. Tinha dificuldade de lidar com cheiros e visão de coisas ruins e descartei especialidades que envolviam essas coisas. A estética sempre me atraiu muito, desde pequeno, acredito que isso influenciou na minha escolha. O fato de ser uma área que estava trazendo inovações foi muito importante também. Quando estava na faculdade, em 1967, foi feito o primeiro transplante de coração do mundo, com o cirurgião sul-africano Christiaan Barnard, no hospital Groote Schuur, na Cidade do Cabo. Em 1971, o ano que formei, o argentino Rene Favaloro fez a primeira cirurgia de ponte de safena. No último ano da faculdade existia, na época, uma bolsa da Capes que pagava de sete a oito salários-mínimos para estudantes do último ano, e era para cirurgia cardio-vascular. Era uma vaga para sei lá quantos mil alunos, e eu consegui. E fiz estágio, além do currículo, em cirurgia cardiovascular, no Hospital das Clínicas, e fiquei fascinado por cirurgia cardíaca, que estava começando. Lembro que umas três vezes o Zerbini saiu de São Paulo para operar aqui.

Por que migrou para clínica?
Porque apesar de ser uma coisa muito bonita, achei um pouco mecânica, e eu queria coisas mais pensadas. Estava no melhor hospital daqui e todos os pacientes que tinham problema cardíaco faziam cateterismo lá e íam operar em São Paulo. Uma das obrigações dos residentes era acompanhar os pacientes, eu vivia indo a São Paulo. Lá eu conheci a nata da cardiologia brasileira, o Sérgio Almeida, Luiz Venere Décourt, Radi Macruz, Zerbini. Levava pacientes, acompanhava cirurgias, quando tinha um curso dava um jeito de ficar mais um dia para participar. Fiquei muito empolgado porque estava vendo tudo começar, o marca-passo, a ponte de safena, tudo da cardiologia começou naqueles anos e o fascínio pela área ficou muito grande.

Disse que era atraído pela estética, e gosta muito de arte. É artista?
Não sei desenhar nem gatinho de duas bolinhas. Mas acredito que Deus colocou no médico uma capacidade enorme de utilizar os sentidos. O cheiro do paciente te dá o diagnóstico de várias doenças, a visão, o tato, auscultar e escutar o paciente também. Quando você usa seus cinco sentidos bem, chega muito perto do diagnóstico, e aí, depois, entra o exame complementar de diagnóstico, que agora subverteram a ordem, pedem um monte de exames antes, para depois consultar o paciente. A primeira coisa são os sentidos e fui bem treinado para usá-los. Para mim medicina é arte, tem um lado extremamente científico, mas tem um lado importante que o artístico. Nem sempre os primeiros alunos são os melhores médicos, porque ficam na teoria, o bom é quem sabe transformar os livros em prática. Temos que ter ciência e arte para entender o resultado de um exame e saber o que vamos indicar, porque cada pessoa tem um contexto clínico que muda totalmente a abordagem. A arte está em entender e perceber até onde vai tratar. Tem inúmeros livros falando sobre pressão alta, mas nenhum fala da pressão alta do fulano. E aí vem a medicina arte. Eu tenho que saber tudo que está nos livros, mas tenho que saber como aplicar aquilo em uma pessoa que absolutamente individualizada. A COVID veio mostrar isso demais.

A COVID atacou o coração de muitos pacientes?
Tive uns 30 casos gravíssimos de comprometimentos cardíacos, cada um de uma forma completamente diferente da outra. Isso não está em nenhum livro e é preciso da percepção do médico, e aí cada um com sua fé e sua crença, mas acredito que além do preparo, da competência, disponibilidade, a medicina tem alguma coisa de divindade, o médico tem uma coisa a mais. Tem uma passagem interessante com minha mãe. Há cerca de seis meses, estávamos conversando e comentei achar engraçado nunca ter tido uma doença, nunca ter tomado um remédio, nem precisado de nenhuma cirurgia. E disse que não entendia como era possível isso. Ela respondeu: “Meu filho, você pode ser ótimo médico, mas se não sabe o porquê disso é por estar muito afastado de Deus. Ele criou pessoas com características especiais para serem médicas, e deu saúde para que possam tratar dos outros quando estiverem com doentes”. Tem uma coisa que somos obrigados a admitir, nem tudo é mérito seu, tenho para mim que tem muito de divino nessa profissão. Muitos colegas podem não concordar, mas quem eram os médicos no início? Os pajés. E curavam. E o problema físico causa problema na cabeça das pessoas e vice-versa. Sempre tem um componente emocional na doença, e quando é muito grande abre espaço muito grande para o charlatão. Quando falo charlatão estou levando para o extremo.

Como foi seu princípio de carreira?
Fiz residência no Prontocor, único hospital cardíaco da cidade. Atendíamos cerca de 30 a 40 chamados de urgência por noite em ambulância. Eu e mais três colegas criamos ali o primeiro CTI em hospital particular da cidade, antes só tinha o do Hospital das Clínicas. Depois fui convidado para ir para o Hospital Felício Rocho, onde fiquei por 12 anos e montamos o serviço de ergometria, um ecocardiógrafo, CTI e pronto socorro.Cheguei a coordenar tudo isso. Montei todo o processo de hemodinâmica, cirurgia cardíaca e cardiologia clínica do Felício Rocho, deixei um grande legado. Até que recebi o convite para ir para o Hospital Mater Dei. Lá a área de terapia intensiva tinha quatro leitos e ampliamos para cem leitos. Criamos o Serviço Integrado de Cardiologia. Cheguei a chefia a Cardiologia, Cirurgia Cardíaca, Hemodinâmica, presidia o Conselho Técnico e fui presidente do Conselho de Ética etc. Gosto de me desafiar, com poucas ferramentas construir uma coisa grande.

Acabou se envolvendo muito com gestão
Um dia, em um Simpósio de Gestão do Mater Dei, falei “não sou gestor”. Todo mundo riu. Verdade, nunca fiz um curso de gestor, mas aprendi, no início da carreira no Felício Rocho, que não adiantava passar cedinho para ver o paciente, prescrever, pedir exames e ir embora. Era preciso fazer as coisas acontecerem. Eu ligava para o cara do laboratório e pedia para coletar o sangue, levava as prescrições e entregava na mão da enfermeira – elas têm cerca de 20 pacientes para olhar, dará mais atenção para o paciente do médico que ela sabe que vai cobrar. Em 1973, não se falava em gestão. Ou eu fazia a gestão completa ou a prescrição não valia nada. O que aconteceu? Alguém enxergou e pensou: “esse cara resolve tudo dos seus pacientes, se for chefe vai resolver tudo de todo mundo”. Acho que isso me levou a ser chefe dos lugares por onde passei.

Por que saiu do Mater Dei?
Nunca saí do Mater Dei. Estava com todas as funções que te falei, mas estava cansando. Porque nunca permiti que nenhuma das minhas atividades atrapalhassem meu consultório. Sempre atendi de manhã e de tarde. Por muitos anos dava plantão de noite e aos sábados e domingo, por 25 anos, um dia no pronto socorro e um dia no CTI. Quando fiz 45 anos de formado me desliguei de todas as coordenações do Mater Dei, porque o consultório estava muito cheio e percebi que não estava tendo tempo suficiente para meus pacientes, porque tem internação, acompanhar cirurgia, etc. Dois anos depois, uns conhecidos meus, compraram o Hospital Vera Cruz, e me convidaram para dar uma consultoria, para montar o corpo clínico do hospital. Nada a ver com gestão, mas do ponto de vista de investimento acho que era maior do que eles pensavam e acabaram vendendo o hospital. Meu contrato permitia que eu saísse quando quisesse, e como não tinha nada a ver com meu projeto, me desliguei. E continuo no Mater Dei como médico, acompanhando meus pacientes.

Fale um pouco sobre esse excesso de pedidos de exames
Essa coisa de pedir muito exame e indicar muito remédio vem quase que de uma “incompetência” ou da falta de um diagnóstico correto. Se não sabe o que o paciente tem, vai cercando com vários remédios. Às vezes as pessoas acham que muitos remédios vão sarar mais. Quando tem um remédio muito bom, que cura, os laboratórios não vão investir em outro para concorrer com aquele. Isso é claríssimo. Geralmente você tem uma doença provocando vários sintomas. Ninguém tem cinco doenças ao mesmo tempo, começando no mesmo horário. Tem que encontrar O diagnóstico para tratar com assertividade para resolver o problema. Isso demanda uma série de habilidades, é o lado da arte da medicina. Quem faz faculdade de medicina não é o laboratório, nem a ressonância, é o medico. Médico usa exame complementar de diagnóstico para definir suas condutas a partir da base científica que ele tem. Antes, o melhor hospital era o que tinha o equipamento, porque só tinha um na cidade. Hoje, os hospitais têm três ou quatro equipamentos para cada exame. Qual é o melhor hospital? O que tem o melhor médico.

Como foi a ideia de montar a Clínica?
Vi que tinha um grupo enorme de pessoas trabalhando comigo, como a Rita de Cassia Lacerda, que está há 30 anos comigo, ajudando a olhar meus pacientes, mas tinha consultório separado. As meninas da fisioterapia e da fonoaudiologia. Comecei a pensar em perenidade e decidi criar a clínica, trazer todo mundo para cá. Não é clínica de exames, mas de diagnóstico, de trabalhar com a cabeça. E o paciente encontra tudo aqui. Todos aqui são treinados para fazer diagnóstico. Hoje temos várias especialidades. Fala-se muito hoje em medicina multidisciplinar, na qual vários médicos atuam, cada um entendendo da sua área. Mas nosso objetivo é uma medicina integral, o que torna o desafio ainda maior, porque a proposta é que cada profissional daqui saiba tudo sobre sua área, mas que tenha também um conhecimento integral da cardiologia para entender o que estamos falando. O médico pode ser especialista, mas o paciente não é especializado.

Disse que fará vários eventos para comemorar seus 50 anos de formato. Quais os planos?
O primeiro foi o convite para a aula para os alunos do último ano da Ciências Médicas, da Liga de Cardiologia. Pediram para eu fazer um paralelo “Em tempo de alta tecnologia, qual o papel do cardiologista clínico”. Foi muito bom e tive excelentes retornos dos alunos. O fato é que as pessoas são e continuarão sendo importantes. Não tem muita coisa. Estamos fazendo eventos internos para rever tudo o que foi feito e para onde vamos. Gestão interna mesmo, como vamos lidar com todo esse grupo aqui pós COVID. Menos de um ano que estávamos aqui veio a COVID e mudou a vida de todos nós, mudou as pessoas. As pessoas achavam que se tinha dinheiro, tudo estava resolvido, a COVID mostrou que o paciente poderia ter dinheiro, mas não tinha leito para ele. É um novo mundo. Aí veio o convite dessa aula. Achei bem interessante. E quem sabe, conseguiremos organizar um evento mais social para falar das coisas boas da medicina.

Se adaptou bem às tecnologias. Como foi isso?
A maioria dos meus pacientes acha que sou professor até hoje, porque gosto de explicar as coisas. Quando o paciente entende o diagnóstico e compreende o tratamento, aumenta o sucesso do resultado. Tive facilidade em conversar porque não uso o mediquês. Alguns dizem que sou muito simples, se ser simples é isso, sou sim. Faço questão de atender o cliente no sofá, para ficar mais próximo, gosto disso, apesar da minha timidez. Talvez por isso atendo três a quatro gerações de uma mesma família, ficamos amigos. Com isso percebi que muitas coisas que falava com os pacientes poderiam ser úteis para o público em geral, e como agora tem essa ferramenta, passei a fazer um bate-papo às sextas-feiras, no Instagram. Parto sempre de um caso real, sem identificação, claro. Isso faz parte do projeto dos 50 anos. 


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