Jornal Estado de Minas
Cerâmica

A beleza do imprevisível


Se na vida tentamos ter controle de tudo, na arte a busca costuma ser exatamente o contrário. Lidar com os imprevistos é o que motiva artistas que estudam a queima de cerâmica no forno japonês anagama. “Escolhi este forno por ser imprevisível e trazer muitas surpresas”, aponta a ceramista Adel Souki, que tem um dos raros exemplares brasileiros no seu ateliê, em Brumadinho, e organizou mais uma queima este mês. O fogo, incontrolável, vai passando e deixando manchas alaranjadas nas peças.

Formada em letras, Adel sempre gostou de cerâmica. Manuseava o barro como uma terapia, só esperando a aposentadoria para trabalhar de vez com arte. Mas os planos se anteciparam quando ela entrou para a Escola Guignard e se envolveu com pesquisas sobre, argila, barro, forno e queima.

É nessa época que a sua história se cruza com a da japonesa Toshiko Ishii, que viveu por quase 40 anos em uma fazenda aos pés da Serra da Moeda, em Brumadinho. Em 1982, Adel e uma amiga foram fazer uma visita à ceramista e, ao saber que ela procurava ajuda para as pesquisas, se candidataram. O trabalho se estendeu por mais de 20 anos, até a morte da ceramista.
“Depois que a conheci, me interessei pelas técnicas japonesas, principalmente de queima, por isso quis aprender sobre fornos.”
Para Adel Souki, as cerâmicas que passam pelo anagama ficam com um ar misterioso - Foto: Leliane de Castro/Divulgação
Seu coração bateu mais forte pelo forno anagama. “É um forno que me interessa muito pela incerteza, pela imprevisibilidade, pelos detalhes que interferem nas cores e texturas. Isso sempre me deu vontade de continuar a pesquisar”, comenta.

Decidida a aprender mais sobre este tipo de queima, Adel escreveu para vários artistas da cidade de La Borne, na França, que tem tradição em cerâmica. Uma pessoa respondeu e aceitou recebê-la. Quando o estágio chegou ao fim, ela voltou para o Brasil com um norte-americano que conheceu lá para ajudá-la a construir o forno, que ganhou o nome de Tatu. Feito de barro, esterco e areia, ele tem cinco metros de comprimento e comporta 400 peças. Fica ao lado do seu ateliê.

Há 22 anos em funcionamento, o Tatu chegou à 37ª queima.
“No início, queimava até quatro vezes ao ano, seguindo os japoneses, que fazem durante as mudanças de estação, mas agora são só duas”, esclarece a ceramista, destacando que o trabalho é bem complexo. Por isso, tem que ser coletivo.

Adel integra o Grupo de Pesquisa Cultura do Barro da Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). O grupo se formou há 12 anos, quando ela participou de um projeto como artista visitante e conheceu um forno de olaria construído em 1955, dentro da UFMG. “Quem tomava conta do lugar eram os padres italianos da congregação Dom Orione, que ensinaram os meninos do Lar dos Meninos a fazer tijolos. Os tijolos das casas da Pampulha dos anos 1960 são todos de lá.”
Grupo da UFMG que estuda o barro participa da queima e discute os resultados - Foto: Leliane de Castro/Divulgação
O preparo para a queima começa pela compra da lenha. No Brasil, a mais indicada é a de eucalipto vermelho. Deve-se deixar a madeira envelhecer por seis meses, já que não pode estar “verde”. O tipo de argila também interfere bastante no processo.
Adel costumar usar a shiro, que ela mesma produz. Para esta queima, criou jarras e potes, alguns com mais de um metro de altura.

A etapa de montagem leva em torno de 10 dias. “Temos que colocar as peças pensando em como o fogo vai incidir nelas. Fogo é como se fosse água: onde tiver um buraco, vai passando”, explica. Para não sobrar nenhum espaço, Adel chegar a modelar peças durante a montagem em tamanhos e formatos que se encaixam nos buracos. Mesmo seguindo a experiência e até artigos científicos (alguns indicam pontos específicos dentro do forno para alcançar determinada cor), o resultado é sempre imprevisível.

O tempo de queima varia, mas, normalmente, são vários dias de trabalho ininterrupto. Dia e noite alguém tem que ficar observando a fumaça, a cor da brasa e a temperatura para seguir o planejamento sugerido pela anfitriã e discutido com o grupo. Artistas e estudantes se revezam em turnos e contam com a ajuda de mão de obra da região, os chamados queimadores de lenha. Desta vez, foram 77 horas de queima (Adel já fez com mais de 100 horas). No Japão, há registros de 15 dias.

A artista Juliana Gouthier participa das queimas há quase 20 anos e se diz apaixonada pela técnica justamente pela imprevisibilidade, que considera fascinante.
Segundo ela, as peças sempre saem mais lindas do que espera. “A queima no anagama escancara este aspecto de imprevisibilidade da nossa existência e aprendemos a lidar com ela e nos apropriar dela, que é a essência da arte. Vamos percebendo as sutilezas e buscando sentido nelas. É como se estivéssemos descobrindo ouro”, compara.

Nos pontos onde o fogo incide diretamente, surgem manchas alaranjadas - Foto: Leonardo Melo/DivulgaçãoAPRENDIZADO 

O momento mais aguardado, sem dúvida, é o da abertura do forno. “O coração dispara e dá vontade de tirar tudo de uma vez, mas não podemos fazer isso, senão corremos o risco de queimar as mãos e quebrar as peças”, comenta Juliana. Adel acrescenta que esse é o momento de maior aprendizado da queima, então tudo tem que ser feito com calma. Nada de deixar a ansiedade tomar conta. As peças saem do forno com uma camada de cinzas e precisam de um tempo de decantação.

Essa é a hora de entender a ação do fogo. Observar por onde ele passou e quais marcas deixou. Normalmente, onde houve contato direto com as chamas surgem manchas avermelhadas ou alaranjadas e texturas diferentes.
Adel considera as peças queimadas no anagama misteriosas. “Vejo mistério e também camadas geológicas. Uma mesma peça pode ter uma camada brilhante e límpida e do outro lado uma camada grossa e rústica”, analisa.

O chefe do Departamento de Belas Artes da UFMG, João Cristeli, enxerga o forno como um organismo vivo, que pulsa, que não se deixa dominar, mas que sempre traz muitas surpresas. E isso faz com que o trabalho de pesquisa nunca se esgote. A cada queima, um novo aprendizado. Para ele, fica a lição da imperfeição. “A queima no anagama não tem a preocupação de ser perfeita. Na cultura japonesa, ela se basta e as pessoas ficam plenas com isso”, destaca.

Marcia Seo é de Campinas, estudou cerâmica no Japão e se mudou para BH em 2006 para fazer mestrado. Pesquisando sobre Toshiko Ishii, acabou se aproximando de Adel. Ela participou desta queima com o intuito de entender como se comportam os esmaltes que contêm ferro. “O ferro, quando é queimado em uma atmosfera oxidante, geralmente tem tons de marrom ou amarelo. Mas, quando está em uma atmosfera sem oxigênio, comprovamos que ele fica esverdeado”, descreve.

A próxima queima no forno anagama Tatu está prevista para janeiro.
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