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Estado de Minas entrevista/Luiz Cláudio da Silva - 47 anos, Diretor artístico da marca Apartamento 03

Sobre moda e pessoas

Por detrás da Apartamento 03, marca é reverenciada na cena fashion brasileira


20/12/2020 04:00

(foto: arquivo pessoal)
(foto: arquivo pessoal)

 
A história parece comum, mas tem vários componentes especiais: um rapaz humilde que ama a moda desde que se entende por gente e que conquistou espaço por meio do seu talento. Porém, entre o começo do sonho e o seu desenrolar, muita coisa aconteceu na vida de Luiz Cláudio da Silva até que a Apartamento 03, marca sob sua direção artística, ganhasse as passarelas da São Paulo Fashion Week e fosse vestida por artistas, celebridades e fashionistas. Para entender melhor esse enredo, é preciso relembrar que o estilista começou a ter projeção quando venceu a final brasileira do mais importante concurso de moda dos anos 1990, o Sminorf Internacional Fashion Award, o que o levou à etapa internacional em Hong Kong, em 1999.
 
Ficou em terceiro lugar, mas foi o passaporte para que ele ganhasse os holofotes e fosse convidado a trabalhar para labels classe A da cidade. Enquanto isso, nas horas vagas, em um dos quartos do apartamento que alugava no bairro Santo Antônio, criava peças autorais e únicas em uma máquina de costura antiga, que eram adquiridas por admiradoras do seu trabalho. Assim nascia a Apartamento 03. Fácil assim? Não. Foram muitos desafios e lutas para manter um negócio caro e elitista, até que o grupo Nohda, encabeçado pela designer Patrícia Bonaldi, comprou a marca, conservando-o na direção criativa. Mineiro típico, daqueles que gostam mais de ouvir do que falar, Luiz Cláudio é famoso pela criatividade e por sua relação com os tecidos e as matérias-primas.
 

"Gosto muito de pensar que estar na SPFW é uma coroação da minha caminhada como designer e das histórias que já contei com minha roupa"

 
 
Em época de vacas magras – antes da parceria com o Nohda, com a Apartamento 03 participando do line up do Minas Trend e pouco dinheiro em caixa, teve a ideia de tingir o estoque de organza que tinha na fábrica e, a partir dali, construiu peças dubladas, desfiadas, desconstruídas, que surgiram na passarela com cara de novidade. Durante a sua trajetória, ele aprendeu a apreciar qualidade e elegância, a mesma que exibe na alma e no estilo simples de viver. Se existe a alegria genuína de se sentir reconhecido pelo trabalho realizado, existe também uma certa sabedoria para se colocar no mundo. Luiz Cláudio não se apega ao glamour. Seu reino é ali, dentro da fábrica, desenhando, bordando, articulando com os colaboradores do chão de fábrica a melhor solução para um modelo. As coleções nascem de enredos com refinamento intelectual. A inspiração pode ser um romance, como o Ensaio sobre a cegueira, de Saramago, que norteou o vídeo Breu, apresentado na última SPFW. Pode ser um filme, um personagem real ou fictício. Ele é um estilista que gosta de contar boas histórias por
 meio das suas roupas. 
 
 
Como foi participar da última edição da São Paulo Fashion Week sem os aplausos no final?
Na verdade, gosto mesmo é dos encontros no backstage, amigos que se encontram durante a SPFW. Tem toda aquela sensação e um nervosismo gostoso de antes da entrada da primeira modelo. Mas, nesta edição, foi mais que necessária a forma como apresentamos o desfile e mais especial ainda como registro do momento a que a nossa geração está assistindo.

Você acha que o canal digital funciona em momentos importantes como esse ou é apenas um paliativo?
É uma experiência muito diferente das salas cheias da bienal. Acho que funciona sim, mas não seria minha primeira escolha, se não fosse o momento atual. Eu gosto de gente e gosto das pessoas por perto. Gosto de olho no olho. É incrível, após o desfile, ouvir as impressões de quem estava assistindo de perto, não há tecnologia que substitua os encontros reais. Mas também acho que podemos ter o canal digital complementando a apresentação real.

A seu ver, a SPFW ainda tem a importância que tinha no passado? É importante participar do evento?
É o maior evento de moda da América Latina e, claro, a melhor vitrine para apresentar seu trabalho ao mercado e clientes. Você pode escolher outras plataformas para se apresentar, existem outros meios. Eu gosto muito de pensar que estar na SPFW é uma coroação da minha caminhada como designer e das histórias que já contei com minha roupa.

Você criou a coleção Breu especialmente para a ocasião?
Comecei a desenhar a coleção Breu em novembro de 2018. As peças que apresentei já estavam prontas desde março de 2019. Tínhamos as primeiras notícias sobre a pandemia e sabíamos que ela chegaria, mas acredito que nem todo mundo imaginou que o mundo estacionaria por completo. Lembro-me das primeiras imagens das ruas da China completamente vazias...e foi quando me lembrei de Ensaio sobre a cegueira e o quanto aquilo parecia bizarro, o mundo parar por um vírus. Foi exatamente o que aconteceu e, em 27 de março, fechamos o ateliê, todo mundo foi pra casa e eu coloquei as peças todas em capas plásticas. Voltamos aos poucos, precisei redesenhar tudo, percebendo que as coisas precisavam fazer sentido como produto naquele momento. Quando decidimos não pular a edição da SPFW, chamei o Paulo Raic e o Luiz Felipe para contar sobre essa coleção em vídeo...e levei aquelas peças exatamente como foram para as capas... sem barra, sem botões ou zíperes, incompletas, como a pandemia nos pegou. Hoje, várias delas fazem parte da nossa próxima coleção.

Por que Breu?
De 1995, o romance de Saramago fala sobre uma epidemia que passa a se denominar como o "mal branco" e cega a população. Diferentemente da cegueira, que é negra, essa parece ser um mar de leite, um breu branco (banheira das vaidades). É uma narrativa que tem muito a ver com os dias que vivemos. Acumulamos abundantes informações sem nem mesmo questionar e, ao mesmo passo em que temos acesso a tanto, nunca fomos tão ignorantes. Parece que cegamos para a história, e o Holocausto e a ditadura parecem um conto nunca existido. Lembrei-me de Saramago porque é, sobretudo, questionar o que é olhar, o que é ter vista. Todos os personagens sem nome, alguns bem-sucedidos e gloriosos, todos sem distinção levados à humilhação, o que deixa bem claro que somos animais.

Quais são as novidades da coleção de inverno?
Como disse, precisei redesenhar o que havia começado, não fazia sentido alguns shapes e moods que tinha planejado. Não fiz vestidos de festa, por exemplo, dei mais atenção a peças com conforto e com modelagens que abracem o corpo. Uma novidade nessa coleção é que estou trabalhando com um tecido de algodão desfibrado da Santanense Têxtil, que já foi minha parceira desde o tempo da Apartamento 03, no apartamento do bairro Santo Antônio. É um tecido construído a partir de todas as sobras de outros artigos dentro da tecelagem.

Você ainda começa todo o processo a partir da matéria-prima?
Sim, esse lugar é um dos exercícios de que mais gosto de fazer dentro do ateliê.

Com o tempo, as marcas vão evoluindo. Quem é o perfil feminino da Apartamento 03 hoje?
Acredito que, principalmente hoje, é uma mulher que procura por qualidade e design e se preocupa com a origem da produção. Não sei fazer de outro jeito, realmente não tenho vontade de desenhar roupas que tenham prazo de validade.

Artistas, celebridades, gente que está na mídia veste as roupas da Apartamento 03. Como é o critério para que isso aconteça? Ou acontece ao movimento da própria mídia?
Acontece muito pelo próprio movimento da mídia e isso me deixou próximo de pessoas que nunca imaginei que vestiriam as roupas que crio. Como critério, eu sempre foco em quem faz diferença como representatividade e, claro, na forma como esse artista conduz seu trabalho. Acho importante o designer ligar sua marca a pessoas que fazem parte do universo em que ela acredita. Muitas parcerias em modelo semelhante ao que você tem com o grupo Nohda não sobreviveram.
 
Qual o segredo para a sua funcionar bem?
Acredito que seja pelo respeito entre as marcas e as pessoas diretamente ligadas em cada empresa. É uma historia que estamos escrevendo juntos e colaboração para todo o caminho é mais do que essencial.

O tempo passa. O que fazer para uma marca ficar sempre desejável?
Adoraria ter essa resposta, mas acho que é saber que tenho que aprender sempre e sempre com o outro. Aqui na Apartamento, estou sempre em diálogo com as meninas que trabalham ao meu lado. O Jackson Araújo fala sobre isto: entender que moda é sobre pessoas. Isso é o que faz sentido para mim.

Suas expectativas quando era mais jovem e namorava o mercado da moda foram atendidas?
Não mesmo. Quando estamos de fora, temos uma ideia muita rasa sobre a moda e seus personagens. A moda é uma indústria extremamente racista, a inclusão nesse mercado de qualquer pessoa que se pareça comigo é algo bem violento e nada romântico. Atravessei muitas coisas, mas também foi na moda que tive encontro com várias pessoas incríveis. 

O que aprendeu com esse mercado?
Que é sobre pessoas, é sobre o outro. Quando se entende isso, você passa a ter um trabalho mais potente. A gente não está falando só de roupa.

O que mudaria nessa história, se fosse possível?
Traria mais pessoas para perto. Sempre tive parcerias com amigos e outras marcas, mas sei que podia ter feito mais e que uma experiência de colaboração pode ser enriquecedora para todos.

Ganhar admiradores na notoriedade é fácil. Quem lhe deu a mão noinício da carreira?
A primeira pessoa que me deu a mão foi a Mary Arantes. Ela me recebeu no seu ateliê depois de uma amiga minha, funcionária dela, falar sobre meus trabalhos. E me recomendou procurar você no jornal Estado de Minas. Isso na moda. Anteriormente, lá no meu primeiro emprego de serviços gerais, foi outra mulher. Ela cuidava do setor de projetos da empresa e se ofereceu para me ensinar sobre desenho técnico e, em seguida, pediu minha transferência para ser seu assistente.

Tem alguém no mercado mineiro que esteja fazendo um trabalho que você ache interessante?
Temos várias pessoas... gosto muito das ideias da Led, do Célio Dias, e tenho visto o movimento do Athos Henrique, da Nove. Ele foi meu assistente e hoje, sozinho, tem batalhado pelo que acredita.

O look postado no Instagram agora prevalece sobre o conjunto de uma coleção. Como fica a importância do estilista nesse processo?
O Instagram é apenas um recorte do que conseguimos mostrar, acredito que ver todo o caminho da marca é o que torna a história mais real. As pessoas têm dado importância muito grande às imagens de Instagram, que nem sempre são reais. Por esse motivo, acho que conhecer o caminho de uma marca pode revelar mais do que ela representa.

A loja da Apartamento 03 em BH sai em 2021?
Estamos ansiosos por isso e já era um projeto que começou a se desenhar lá no início de 2019. A pandemia nos pegou no meio do processo, mas também acelerou a nosso desejo de ter uma loja ateliê. Em 2021, estamos chegando.

Quem é Luiz Claúdio da Silva?
Ainda sou aquele garoto tímido que você conheceu há alguns anos, hoje mais tímido do que garoto... com muitas vontades e desejos. Passei a ter mais clareza sobre minhas escolhas e minhas potências. Amo muito o que faço, mas entendi que se esse lugar não for de troca, não me serve. 


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