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Amor pela dança e pelas pessoas

Criativa, curiosa e inquieta, Suely Machado conseguiu criar a escola de dança da diversidade


postado em 03/02/2019 05:04

(foto: Ramon Lisboa/em/d. a press)
(foto: Ramon Lisboa/em/d. a press)

 

 

Diferente. Essa é a sensação que temos quando entramos no Centro de Dança 1º Ato. Não sabia explicar o por quê, e o sentimento estranho continuava e se tornou mais forte quando entrei na sala de Suely Machado e percebi que faltava alguma coisa. Sem deixar que ela notasse, vasculhava com o olhar, de alto a baixo, os quatro cantos do espaço, que é pequeno, em busca da resposta, até que encontrei: ela não usa computador. Fiquei me perguntando como uma empresária consegue gerir seu negócio no século 21 sem essa ferramenta. Pois ela faz questão de não tê-lo. Gosta do ser humano, do olho no olho, de interagir com as pessoas, de se mostrar acessível. E com essa postura diferente diante da vida, Suely se fez. Uniu, de forma intuitiva, suas três grandes paixões: arquitetura, psicologia e dança. Bailarina, coreógrafa, empresária e diretora artística do grupo de dança 1º Ato, a profissional é formada em psicologia, profissão que exerceu com sucesso por um tempo, e usa até hoje, na dança.


A arquitetura, o amor pela ambientação estética e pela espacialidade, foi praticada nas montagens dos espetáculos. Suely foi jurada e já ocupou o cargo de conselheira do Festival de Dança de Joinville e é a única jurada técnica da Dança dos Famosos, fora do eixo Rio/São Paulo. Há 37 anos, sua escola oferece estilos variados de dança e se orgulha de conseguir passar para os alunos que qualquer pessoa pode dançar, basta querer.

 

 

Como foi a menina Suely?
Teve uma característica muito marcante na minha vida que foi o fato do meu irmão, que é apenas um ano mais velho do que eu, ter nascido surdo e mudo. Há 65 anos não tinha escolaridade suficiente para isso e nem muito discernimento sobre a questão, na minha memória de berço tive a presença do meu pai muito mais que da minha mãe. Isso foi maravilhoso, porque eu tive um pai muito amoroso, muito afetivo, muito sensível, que para deixar minha mãe cuidando de uma criança “especial”, ele me levava para o Mercado Central, às 5h. Tenho memória de cheiros, cores, diversidade, sonoridade de pessoas falando com aquele universo de bichos, frutas. Isso é muito marcante na minha vida.

Isso é uma sensibilidade artística. De quem herdou essa veia artística?
Meu pai era um dançador de tango e bolero, e minha mãe cantava no coral da escola. Era uma casa onde as pessoas cantavam e dançavam. Tinha um piano, no qual todos nós estudamos desde criança. Estudei piano e violão dos 8 aos 14 anos. Comecei pela música. Não me pergunte por que, não saberei explicar, mas entre 5 e 7 anos gostava de me exibir dançando frevo. De onde eu tirei esse frevo? Sei lá. Acho que meu pai trazia isso musicalmente. Eu adorava. Comecei daí a sensibilidade e reflexão.

Como assim reflexão?
Eu era uma criança que gostava de ficar sentada, em cima de uma cômoda, olhando pela janela, viajando. Acho que tive angustia aos 5 anos de idade.  Aquela angústia existencial do quem eu sou, o que estou fazendo aqui, o que eu quero? Lembro muito jovem desse tipo de reflexão aliada a essa questão musical.

Então, você era uma menina quieta e introspectiva?
De jeito nenhum. Eu sempre fui a menina levada, esperta e curiosa da casa, que derrubou barreiras e preconceitos. Minha irmã mais velha era a certinha, que fazia trabalhos manuais, bordava, etc., e meu irmão era surdo e mudo. Minha irmã mais nova – chegou cinco anos mais trade – era como a primogênita. Eu saí quebrando estruturas. Sempre fui a ovelha negra da família, mas por outro lado eu era nerd. Sempre muito curiosa, estudava muito e só tirava 10.

Você era uma criança madura. Isso se deu por causa da sua estrutura familiar?
Sim. Era muito jovem para elaborar tanto, para ser tão reflexiva. E foi consequência da estrutura familiar sim. Meus pais primavam pela responsabilidade e pela ética. A família da minha mãe é uma mistura de francês com negro, e do meu pai é de índio com português. Tinha uma estética na família da minha mãe. Minha avó era uma mulher elegante, que fazia as unhas, andava de sobretudo. A família do meu avô era negro, mulato, mas com uma educação muito rígida. E a família do meu pai era do interior, da zona rural, que era amoroso, festivo, alegre. Tive essas duas influências. Na minha casa imperava o machismo, meu irmão era o rei e as três filhas tinham que fazer tudo desde os 6 anos de idade para aprender a ser uma moça prendada.

Quando começou a praticar a arte?
Depois da música, fui cantar, mas foi na pré-adolescência, quando fui para o Colégio Estadual Central, que dei vazão à minha música porque lá tinha festivais. Fui cantar, jogar vôlei, handebol, tocar violão. O Estadual me inseriu no mundo artístico, mesmo que amadoristica e informalmente falando, era um lugar fértil. Um grande amigo me perguntou por que eu não dançava. Minha resposta foi: “Não sou cor-de-rosa”. Achava que dança era só o balé clássico de ponta. Era o estereótipo que eu tinha. Ele me falou da dança moderna, eu não sabia do que se tratava e ele explicou.

Foi aí que entrou para a dança?
Fui fazer jazz no Núcleo Artístico. Em 1975, o Corpo estava abrindo a escola, e fui fazer aula de dança moderna na técnica da americana Martha Graham, que trabalhava o alongamento através da espiral. Lembro-me o exercício. Deitada no chão, levantei a perna e dobrei para fazê-la encaixar no quadril. Na hora em que encaixei a perna, encaixei em mim. Vi que aquele era o meu lugar. Pensei na hora: “É isso que eu quero na minha vida”, porque na realidade unia a música, o canto, o esporte, a consciência, a reflexão, mas na composição de uma dramaturgia que era para mim a dança moderna contemporânea, ligada estritamente, para mim, ao teatro. Uma dança em que você não fica expondo somente a sua virtuose técnica e física, mas a dança que eu desenvolvo até hoje, quando falo dramatúrgica, é porque ela mexe com a sua memória, suas sensações. Faz nos identificar com o que estamos dançando. Isso eu sinto, já vivi. É uma dança pautada na poética e na humanidade.

E o estudo? Tinha passado no vestibular de psicologia.

Então a dança veio antes da psicologia? E como foi a escolha do curso?
A psicologia e a dança nasceram juntas em mim. Era apaixonada pela arquitetura. Fui uma decoradora nata. Gosto da espacialidade, das cores. Duas coisas me chamavam a atenção: a arquitetura, por esse lado da composição estética; e a psicologia, pela angústia existencial precoce que tinha aos sete anos de idade. Sempre fui apaixonada pelas pessoas. O ser humano para mim é o maior presente que alguém pode me dar. Quando vejo alguém conversando ou discutindo, paro e fico ouvindo de boca aberta – meu marido sempre briga comigo. Encanto-me com essa diversidade que nós somos como humanos. Estava dividida entre a arquitetura e o humano e fazer psicologia. Me formei na PUC Minas com especialização em coreoterapia, que é uma terapia para autistas e em psicomotricidade. Estudei psicologia junto com a dança.

Sente-se completa?
Totalmente. No final das contas, acabei fazendo tudo o que queria. Uni a dança com a psicologia e a arquitetura. Quando monto um espetáculo eu faço cenário, luz, e ambientação estética de palco, e uso a psicologia no desenvolvimento do ser humano.

Quando surgiu a ideia de fundar uma escola de dança?
Trabalhava em atendimento clínico pela manhã e de tarde e de noite dava aula de dança moderna para criança no Corpo. Certo dia, estava indo para a clínica e estava numa tristeza enorme, e me perguntei o que estava fazendo ali. Não era isso que eu queria fazer. Fui para a clínica, fiz os atendimentos, e, em seguida, apresentei minha carta de demissão. Passei a trabalhar só com dança. Tínhamos aula com Izabel Santa Rosa, uma professora portuguesa, e um dia ela disse para eu criar um espaço para mim, porque minha cabeça era livre, que eu estava pronta e meu tipo de dança era completamente diferente de tudo o que ela estava vendo ali. Ela percebeu essa dramaturgia, essa ligação com o teatro, que é diferente da estética que o Corpo escolheu. Mas o Corpo foi minha grande formação. Mesmo assim, fiquei oito anos ali, porque me faltava segurança para fazer algo sozinha. Em 1982, eu e mais três amigas  bailarinas, cada uma de um estilo, decidimos abrir uma escola diferente, com várias linhas de dança. Éramos quatro, porém, abrir uma escola implica em outras atividades além da dança, e elas acabaram saindo e há algum tempo eu estou sozinha.

Como se sente estando à frente de uma escola de dança com quase 40 anos de mercado?
Realizada de estar lutando para viver e sobreviver da minha arte. Porque vivemos em crise, para a arte a crise sempre existiu, nós nunca fomos prioridade. Em um país onde a educação é preterida em termos de prioridade, a arte então... Primeiro é a saúde, a escola, o inglês, a natação. As pessoas não entendem que dança é educação, segurança pública, saúde, foco, disciplina, concentração, consciência corporal. Nunca tivemos um governo que priorizasse a arte. É sempre uma dificuldade lidar com essa falta de noção da importância da arte e da cultura para o desenvolvimento de uma sociedade sã, inteligente, que pode prosperar. Ninguém fica sem arte e cultura, mesmo que não tenha consciência disso. Você vai ao cinema, ao teatro, ao museu, ou leva as crianças para brincar em algum lugar. Quando você viaja para algum lugar, vc ai a museus, musicais, arquitetura, monumentos. O homem está sempre buscando se alimentar da arte mesmo que não tenha consciência disso. O mais bonito disso tudo é que não nos realizamos nunca, porque é infinita essa busca. Nunca estou satisfeita, nunca achei que estou no lugar onde gostaria de estar, quero sempre mais. Esta escola é uma busca constante da descoberta do que os seres humanos que vivem hoje precisam para eu oferecer a eles. Então, para mim, o que eu, como e através do que eu posso oferecer e qual a sensação que a pessoa tem aqui dentro.

Como é tocar tudo isso sozinha?
Não sou sozinha, trabalho em equipe e o meu papel é fazer com que as pessoas tomem o 1º Ato como se fossem delas, com a consciência que não é só delas. Aprendemos a dividir impressões diferentes em prol do Centro de Danças. Não é o que eu quero, mas o que o Centro de Dança precisa. E nisso a psicologia me ajuda muito, na escuta. Aprofundei-me nos sentidos que vi faltar na minha casa. A audição, a fala e a visão, porque meu pai fiou cego aos 38 anos. O masculino na minha casa não enxergava, não falava e não escutava. Fui praticar esses sentidos através do movimento e do meu tipo de gestão. Escuto muito, eu falo muito e sou muito perceptiva do meu entorno.

Hoje, tem muita criança e adolescente com sobrepeso e isso sempre foi um preconceito em escola de dança. Como vocês trabalham essa questão?
O corpo de uma pessoa é o retrato dela, mostra suas escolhas. Não podemos ignorar a hereditariedade. Aqui dentro recebemos gente de todos os tipos. Temos alunos com Síndrome de Down, atrasos de desenvolvimento motores e emocionais, etc. Tenho aula de clássico para mulheres de 50 e 60 anos que dançam lindamente com o corpo que elas têm. Isso não tem nada a ver com a dança. Tem a ver com quem quer ser um profissional de dança, mesmo assim, dependendo do estilo no qual quer se profissionalizar, porque a dança contemporânea é uma vivência ao alcance de qualquer pessoa. Se você quiser dançar a dança clássica de repertório dos séculos 17, 18, em sapatilha de ponta, fica difícil porque o peso atrapalha de subir nas pontas, mas tenho alunas gordinhas que sobem nas pontas. Ela pode não ser aceita em um grupo profissional de dança clássica, mas isso não a impede de dançar. Tinha dois irmãos que estudavam aqui. A menina media 1,45m e pesava 60kg, ela era gordinha e fazia coisas incríveis. Não damos espaço para os alunos praticarem bullying. Temos muitos depoimentos dizendo que aqui não é apenas uma escola de dança, mas uma escola de vida, de realização humana. Aqui não valorizamos a estética, mas o talento artístico e o prazer do aluno em dançar. Minha função é descobrir qualidades em você que desconhece e mostrá-las.

Como consegue viver sem computador?
Quando chegou o computador, fiquei morrendo de medo de todo mundo ficar mergulhado nele e não olhar para mais ninguém. Ele é necessário, claro, mas estabeleci que queria os coordenadores andassem pela escola, pelo menos a cada meia hora. Falo para as minhas recepcionistas que têm que trabalhar com computador que quando chegar alguém têm que largar o computador e olhar para a pessoa, para dar um atendimento olho no olho. Já tentaram colocar computador para mim várias vezes, eu não aceito. Eu quero olhar para quem fala comigo. O que preciso consigo fazer no celular.

Quais os planos e preocupações para o futuro?
Um deles é para com a terceira idade. A Europa demorou 100 anos para passar de países jovens para países da terceira idade. O Brasil vai demorar 15 anos. Já estou pesquisando qual o tipo de dança essa população idosa quer ter o prazer de dançar e o que vou oferecer para eles. Estou me dedicando a isso. Mas, antes de qualquer coisa, quero mostrar para o empresariado que ele pode colaborar com a educação apoiando grupos de dança e de teatro. Preciso mostrar para eles e para o poder público a força que é a arte para o desenvolvimento da cidadania. O foco, a disciplina, a consciência de si mesmo, a harmonia, o bem-estar são condições primordiais e básicas para a formação de um cidadão crítico competente, com noção do coletivo. Trabalho para isso. Faço espetáculos com meu grupo que busquem e proponham uma reflexão sobre o mundo que a gente vive. Isso para mim é fundamental. Tenho uma escola em que quero mostrar e valorizar as pessoas naquilo que elas têm de singular, com isso vou criar profissionais competentes para refletir sobre o tempo que eu vivo através do grupo profissional. Uma coisa leva à outra.


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