Essa história de amor tem pelo menos 14 mil anos. Tanto tempo de cumplicidade e companheirismo fizeram do homem e do cachorro unha e carne. Não existe, na natureza, nenhum outro caso de duas espécies distintas que tenham desenvolvido tamanha relação afetiva, cooperativa e comunicativa. E, apesar de milênios de convivência, há muito pouco se começou a compreender o comportamento do melhor amigo. Foi apenas no fim da década de 1990 que a ciência voltou os olhos para os cães. A riqueza e a complexidade do animal conquistaram os pesquisadores e, hoje, a produção de trabalhos é numerosa. Uma rápida pesquisa no Google Acadêmico encontra mais de 1,4 milhão de artigos com a palavra dog nos últimos 17 anos.
Atentas às investigações e às descobertas mais recentes, as cientistas brasileiras Carine Savalli e Natalia de Souza Albuquerque - elas mesmas prolíferas pesquisadoras do tema - organizaram o primeiro livro nacional dedicado à cognição e ao comportamento de cães, sob o viés científico. Lançado há uma semana, Cognição e comportamento de cães – a ciência do melhor amigo (Editora Edicon) desvenda alguns dos mais curiosos aspectos de um animal que, segundo Natalia, ainda tem muito a ensinar.
Pesquisadora de emoções e cães, um tema que envolve percepção e reconhecimento emocional, além de empatia, a bióloga explica que, até os anos 2000, os cachorros como objeto de estudo eram negligenciados tanto pela biologia quanto pela psicologia. Se, por um lado, o interesse maior estava em animais não domesticados (e que, portanto, fornecem importantes conhecimentos da vida selvagem), por outro, os cães ainda eram vistos apenas como coisas fofinhas que respondiam a condicionamentos, como pegar a bola em troca de um afago ou de um petisco. No Brasil, isso mudou com o psicólogo e pesquisador da USP César Ades, um dos pioneiros nos estudos da etologia (ciência do comportamento animal), que, ao morrer, em 2012, aos 69 anos, deixou uma vasta produção nessa área e a inspiração para dezenas de pesquisadores.
Entre os muitos objetos de estudo de Ades esteve a cachorrinha Sofia, uma SRD que se tornou famosa para o público leigo por ter sido a primeira companheira na televisão do zootecnista Alexandre Rossi, hoje popularmente conhecido como Dr. Pet.
A cadelinha foi filmada muitas vezes sozinha.
Da mesma raça, a cadela Chaser é conhecida na internet como “a mais inteligente do mundo”. Ela conhece mais de mil palavras e compreende o nome de um objeto em três níveis (sabe o que é garfo, entende que garfo é um utensílio e, ainda, que ele é um talher). Segundo Carine Savalli, esses casos mostram que, com treinamento precoce e adequado, os cães podem desenvolver habilidades cognitivas verbais que, há até pouco tempo, eram inimagináveis. “Há variações individuais, mas acredito que o meio e a estimulação fazem toda a diferença.
Sensíveis às emoções
Quando a bióloga Natalia de Souza tinha 2 anos, divertia a família dizendo que, quando crescesse, queria ser “psicóloga de bicho”. Aos 4, afirmou que ganharia um Nobel ao provar que os animais são tão inteligentes quanto os homens. Hoje, aos 29, é doutoranda na área e, quem sabe, ainda poderá comprovar sua hipótese. De uma coisa a coautora do livro já tem certeza: os cães percebem as emoções humanas e mostram-se sensíveis a elas.
Uma fonte de inspiração para Natalia é Poly, daschund que viveu nove anos, período em que se tornou a melhor amiga e confidente da bióloga. “Eu nunca a treinei e ela tinha uma comunicação maravilhosa. Queria entender se era assim mesmo ou eu é que estava imaginando”, conta a cientista.
Hoje, o foco do trabalho da bióloga são as emoções. “Pesquiso como é a relação afetiva entre humanos e cães e de que forma eles conseguem entender nossas emoções”, explica.
Afeto tem evidências arqueológicas
As autoras do livro também destacam as descobertas científicas sobre o apego de cães e tutores, algo que, de acordo com elas, se assemelha, em muitos aspectos, com o apego entre criança e figura materna. As pesquisadoras citam, inclusive, a primeira evidência arqueológica dessa relação de afeto, que data de 12 mil anos. “Trata-se de um esqueleto humano com a mão sobre o esqueleto de um filhote de cão que, provavelmente, não servia de comida, pois estava inteiro”, escreveram no capítulo sobre o tema, também assinado pela psicóloga e mestre em medicina veterinária Alice de Carvalho Frank.
Um dos experimentos mais indicativos dessa relação foi o que mediu, em cães e mulheres, os níveis de ocitocina após a interação entre eles. Essa substância, também conhecida como hormônio do amor por ser produzida na hora do parto para estimular o vínculo entre mães e filhos, aumentou tanto nos cachorros quanto nas voluntárias do estudo.
Segundo as autoras, um dos objetivos do trabalho é fazer com que, conhecendo melhor, as pessoas possam respeitar mais os animais. “Cães são animais fantásticos e incríveis. Muitos sofrem maus-tratos, negligência e abandono. Algumas pessoas não sabem que eles percebem emoções, sofrem e criam vínculos. Se soubessem, acho que não os abandonariam”, afirma Natalia de Souza. “Uma das coisas mais incríveis sobre os cachorros é que eles foram programados para amar os seres humanos”, conclui Carine Savalli.
PALAVRA DE ESPECIALISTA
Angélica da Silva Vasconcellos, bióloga
Eles não são mini-humanos
“Embora muito do comportamento dos lobos já não apareça mais no repertório comportamental do cão, eles também não são mini-humanos. No livro como um todo, são discutidos trabalhos que levantaram o que é e o que não é verdade a respeito do cão. O que já se comprovou como característica dele, o que ainda está sob investigação e - principalmente - o que se provou falso após investigação cuidadosa. Nossa tendência ao antropocentrismo nos leva, muitas vezes, a assumir como do cão necessidades que são exclusivamente humanas — e isso pode levar a impor aos animais padrões e estilos de vida que absolutamente não atendem às suas reais necessidades.”.