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Estado de Minas

Estilista mineira Zuzu Angel enfrentou militares em busca do filho

No cinquentenário do golpe de 1964, as lembranças se tornam mais doloridas para familiares da famosa estilista


postado em 28/03/2014 09:38 / atualizado em 28/03/2014 09:51

Mulher de personalidade forte, Zuzu Angel usou a sua arte como arma para denunciar, no exterior, a ditadura militar(foto: Arquivo Em)
Mulher de personalidade forte, Zuzu Angel usou a sua arte como arma para denunciar, no exterior, a ditadura militar (foto: Arquivo Em)
Ela não pôde segurar o filho morto nos braços, enxugar o suor e o sangue de seus poros e dar o beijo da despedida. Não jogou flores sobre o caixão, nem teve uma sepultura para visitar quando a saudade doeu fundo na alma. Até o fim de seus dias, a mineira de Curvelo Zuleika Angel Jones (1921-1976), que entrou para a história e o mundo da moda como Zuzu Angel, foi guerreira e lutou com todas as forças de mãe para encontrar o corpo de Stuart Edgar Angel Jones, assassinado aos 26 anos, em maio de 1971, pelos órgãos de repressão, no auge da ditadura militar. No cinquentenário do golpe de 1964, que se completará na próxima segunda-feira, as lembranças se tornam mais doloridas para a jornalista Hildegard Angel, residente no Rio de Janeiro (RJ): "Minha mãe foi uma Tiradentes de saias, e Minas deve se orgulhar dela, pois foi a única, naqueles tempos de medo congelante, a levantar o queixo e apontar o dedo. Intimidava os poderosos. Isso foi notável. Meu irmão não deu a vida de brincadeira, nunca foi festivo. Era um legítimo".

A estilista que trouxe para o país o termo fashion designer fez moda genuinamente brasileira e ganhou reconhecimento internacional, com matérias publicadas no New York Times e Le Monde. "Mas ela sempre dizia que preferia ser citada no Curvelo Notícias (CN) da terra natal do que em qualquer outro jornal do mundo", recorda-se Hildegard, que no próximo dia 1º participará em São Paulo da abertura da mostra Ocupação Zuzu, inteiramente dedicada a todas as facetas da vida e obra da mineira ilustre. O conterrâneo, diretor-presidente do CN, Raimundo Martins dos Santos, de 84 anos, também lembra dessa declaração. "Zuzu era uma pessoa de bem com a vida, mas o fato de não encontrar o corpo do filho a deixava louca de tristeza."

A família de Zuzu Angel, nascida Zuleika de Souza Netto, se mudou de Curvelo, quando ela ainda era criança, para Belo Horizonte, onde ocorreram fatos que agora são lembrados e divertem Hildegard. "No início da adolescência, foi expulsa pelas freiras do Sagrado Coração de Jesus por malcriação. Mais tarde, se sagrou campeã de natação e ‘nadou de braçada’ em tudo o que fazia. Mamãe sempre foi revolucionária, acho que de origem, e fazia questão de dizer que, em Curvelo, havia um lugar chamado Revólver Clube, isso bem antes de os Beatles lançarem um disco chamado Revolver e do surgimento da banda Guns N’ Roses."

Por volta dos 18, 19 anos, a jovem estava na casa de parentes, na capital, quando viu pela primeira vez o norte-americano Norman Angel Jones, que comprava cristais de rocha e pedras de Minas para a embaixada dos Estados Unidos. "Papai era um galã. Na hora, conforme me contaram, minha mãe, que já falava inglês, disse às primas e tias que se casaria com aquele homem. E se casou, nascendo Stuart, Ana Cristina, residente na França desde 1969 e eu, a caçula."
Em 1947, o casal foi morar no Rio e, mais tarde, nas criações de Zuzu, o Angel (anjo) do sobrenome passou a ser logomarca.

"Era uma criadora de moda completa, pois entendia de todo o processo, do corte e costura à apresentação do produto. Hoje, esse é o conceito mais moderno da moda." Mesmo que tenha corrido mundo e morado nos Estados Unidos, Zuzu manteve intacto o amor por Minas: Em 16 de dezembro de 1971, declarou: "Preciso sempre reabastecer minhas baterias de mineirismo. Quando sinto que vai acabando, tenho de voltar".

Sem perdão 


Stuart Edgard foi assassinado na base aérea do galeão, e o corpo teria sido jogado no mar(foto: Arquivo EM)
Stuart Edgard foi assassinado na base aérea do galeão, e o corpo teria sido jogado no mar (foto: Arquivo EM)
A morte de Stuart Edgar, estudante de economia que caiu na clandestinidade e integrou o Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8), foi um turbulento divisor de águas na vida de Zuzu Angel. Das profundezas da dor à flor da pele, ela percorreu, já separada do marido, a sua via-crúcis com destemor, sem jamais conseguir encontrar o corpo do filho. Em 29 de novembro de 1986, 10 anos depois da morte de Zuzu, o jornalista José Maurício Vidal Gomes, amigo dela de longa data, publicou no Estado de Minas a reportagem “O urro de uma leoa em busca do filho”. Ele escreveu: "Quantas vezes ouvi este grito, onde quer que estivesse ao lado de Zuzu: ‘Tudo o que quero é meu filho. Já que ele está morto, quero o seu corpo, quero enterrar com minhas mãos o filho que saiu de minhas entranhas (…) Para uma mãe, é pedir muito?’”.

Um companheiro de cela de Stuart relatou que, na manhã de 14 de maio de 1971, depois de dois dias de tortura, ele foi "colocado no porta-malas de um Opala amarelo e levado para a Base Aérea do Galeão, no Rio, onde ficava o Centro de Informações da Aeronáutica (Cisa)". E mais: à noite, de uma janela, a testemunha pôde ver Stuart, "já com a pele semiesfolada", ser arrastado de um lado para o outro do pátio do Cisa, amarrado a uma viatura e com "a boca quase colada a um cano de descarga aberto, a aspirar gases tóxicos".


Na sequência, conta Hildegard, o corpo teria sido jogado no mar. Em depoimento à Comissão Nacional da Verdade, em agosto de 2013, dois militares perseguidos pela ditadura confirmaram a cena de horror e as "toxinas do cano de escapamento".

"Minha mãe nunca perdoou. Não se conformou com a morte de Stuart. Fez da perda uma bandeira, não baixou a guarda nem abaixou a cabeça. Foi impávida e altiva até o final, principalmente no governo Médici, o tempo mais terrível" – o presidente Emílio Garrastazu Médici (1905-1985) governou o país de 1969 a 1974, já no período chamado de anos de chumbo. "Meu irmão nunca entregou ninguém, era um ideológico. Minha mãe sabia de tudo, claro, e sempre foi solidária a seu filho", diz a jornalista.

Na obsessão de encontrar Stuart, Zuzu costurou para dona Yolanda Costa e Silva (1910-1981), viúva do ex-presidente Artur da Costa e Silva (1899-1969), mas a proximidade não surtiu o efeito desejado. Então, passou a mimeografar dossiês contendo as denúncias sobre o assassinato do filho e entregá-los às atrizes Kim Novak, Joan Crawford e Liza Minelli e encaminhá-los ao senador Edward Kennedy. Em 1976, furou o bloqueio da segurança do secretário de Estado norte-americano Henry Kissinger, em visita ao Brasil, e lhe entregou nova documentação sobre o desaparecimento do filho, que também era cidadão americano.

Desfile-protesto


Mas foi em 1971, que Zuzu fez o "primeiro e único" desfile-protesto de que se tem notícia, realizado no consulado brasileiro em Nova York. Desde o Ato Institucional nº 5 (AI-5), datado de 13 de dezembro de 1968, estava proibido falar mal do país no exterior. "Ninguém podia dar qualquer declaração ofensiva ao governo, do contrário estava fadado a responder processo, ser preso e torturado. Sendo assim, mamãe fez um desfile comovente, com as modelos usando fitas pretas de luxo na manga, gola, pala e cintura dos vestidos. Ao lado dos bordados tão "agradáveis" e costumeiros nas roupas, havia andorinhas pretas, sol quadrado, canhões atirando e até soldados, que, segundo ele, "recebiam ordens tirânicas".

Hildegard não consegue conter as lágrimas ao lembrar que Zuzu, no seu desespero, envelheceu "20 anos em dois" e só conseguia encontrar alegria na criação. E a peregrinação continuou acelerada durante anos, mobilizando a imprensa internacional e fazendo contatos, até que, em 14 de abril de 1976, a estilista morreu num acidente no Rio de Janeiro: o Karmann Ghia azul que dirigia derrapou na saída do túnel Dois Irmãos, que depois foi batizado com o seu nome, bateu na mureta de proteção e caiu numa ribanceira. Uma semana antes, temendo que lhe ocorresse algo, "como um acidente de automóvel", ela deixou com o compositor Chico Buarque e outros amigos cartas explicando que a responsabilidade deveria recair sobre "as mesmas pessoas que mataram o meu filho".

No ano seguinte, Chico Buarque e Miltinho, do MPB-4, compuseram Angélica, em homenagem a Zuzu Angel, num tom de acalanto: “Quem é essa mulher/que canta sempre esse estribilho?/só queria embalar meu filho/que mora na escuridão do mar/Quem é essa mulher/que canta sempre esse lamento?/só queria lembrar o tormento/que fez o meu filho suspirar…" Em 25 de março de 1998, 22 anos depois da morte da mineira de Curvelo, o governo brasileiro reconheceu que ela fora vítima de atentado político e não de acidente de carro. O depoimento de dois advogados residentes em João Pessoa (PB) e que estudavam direito na PUC do Rio, na época, foi decisivo para a decisão. "Os dois estarão presentes na abertura da mostra, diz Hildegard.

Mensagem de vida

Anna Marina

A estilista mineira Zuzu Angel (c), com sua filha Ana Cristina (e) e Kathy Lindsay, filha do prefeito de Nova York(foto: Arquivo EM)
A estilista mineira Zuzu Angel (c), com sua filha Ana Cristina (e) e Kathy Lindsay, filha do prefeito de Nova York (foto: Arquivo EM)
Conheci Zuzu Angel no início dos anos 1960. Ela se hospedava na casa de uma parente que morava perto de mim, no Bairro Santo Antônio. Estava chegando de Curvelo, onde nasceu, e seu trabalho como estilista logo chamou minha atenção. A moda brasileira ainda engatinhava por aqui, mas ela estava muito além do copismo, da conformação a modelos importados. Já defendia a cultura brasileira, criando roupas em algodão estampado, florais que lembravam nossas chitas, rendas feitas à mão e modelagem muito pessoal, sem muitos truques de cortes e recortes. Zuzu batalhava para colocar no mercado – e na cabeça das brasileiras – um estilo que tinha muito mais a ver com nosso país tropical do que o das rendas e musselinas usadas na época. Naquele tempo já fazia da moda uma mensagem de vida.

Sua originalidade fez sucesso principalmente nos Estados Unidos, quando produziu vários desfiles e teve coleções vendidas em algumas das principais lojas de Nova York. Era, para os padrões da época, uma estilista vencedora que, estimulada, chegou até a abrir uma butique em Ipanema, a ilha da modernidade do país. Só que, antes disso – anos 1970 –, ela já mostrava uma outra faceta de seu caráter pioneiro, destemido, defensor de suas crenças. Quando a ditadura se instalou no país, seu filho Stuart foi um dos presos, torturado e morto no Galeão, e a família nunca teve acesso ao seu corpo.

Zuzu mostrou sua força através da moda que fazia. Foi desfilar nos Estados Unidos sua revolta contra a ditadura, criando estampas com anjos de luto (o anjo era uma das marcas de suas criações, apoiada em seu nome). Pegou o consulado de Nova York de surpresa e colocou na passarela uma coleção de protesto. Nas roupas, as estampas de sua dor de mãe: anjos engaiolados, grandes manchas vermelhas, motivos bélicos, mensagens políticas que foram amplamente divulgadas pela imprensa internacional.

Voltando ao Brasil, ela não se calou, continuou a lutar contra o desaparecimento do corpo de seu filho Stuart. Incomodou tanto que, em abril de 1976, o carro em que ia para casa – sozinha e na direção – foi empurrado da Estrada do Joá abaixo. Zuzu morreu – mas deixou uma imagem tão forte na sua luta contra a ditadura como deixou com sua moda, orgulhosamente apoiada em suas raízes brasileiras.

Homenagem a uma guerreira

Uma foto da década de 1920 da Rua Primeiro de Maio, hoje Rua Zuzu Angel, no Centro de Curvelo, será um dos destaques da mostra Ocupação Zuzu, em cartaz de 1º de abril a 11de maio, dia das mães, em três andares do Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149), em São Paulo (SP). Ao lado desse registro, estará a Matriz de Santo Antônio, na qual a estilista foi batizada. Os retratos fazem parte do acervo da prefeitura local, que pretende, futuramente, abrir um espaço para reverenciar a memória da estilista. A iniciativa, informa o jornalista e escritor de Curvelo Newton Vieira, é homenagear, depois, outros filhos ilustres da cidade, entre eles o escritor e primo de Zuzu, Lúcio Cardoso (1913-1968), autor de Crônica da Casa Assassinada, e o artista gráfico Alceu Penna (1915-1980), que trabalhou na revista O Cruzeiro e criou As garotas do Alceu.

A exposição apresentará cerca de 400 itens, incluindo documentos, objetos, fotos, roupas e textos manuscritos. Na busca pelo filho, a estilista escreveu cartas de denúncia a amigos e outras mães de desaparecidos, congressistas americanos, militares brasileiros, entre eles o então presidente Ernesto Geisel (1907-1996), intelectuais e artistas, a exemplo de Chico Buarque. As mais importantes correspondências assinadas por ela, documentos (alguns inéditos, outros, cópia), mensagens para dar coragem ou pêsames, recebidas de amigos, e artigos publicados sobre a estilista nas mídias nacional e internacional também poderão ser vistos.

A exposição traz, ainda, material audiovisual de valor histórico, como trechos do desfile de protesto, realizado em Nova York, objetos e fotografias do filho desaparecido – muitos apresentados ao público pela primeira vez. Segundo os organizadores, o objetivo é mostrar "a criadora, mãe, empresária e militante".

Ocupação Zuzu incorpora ainda outros eventos, como uma mostra de cinema, com curadoria de Eduardo Morettin, professor de História do Audiovisual da Universidade de São Paulo (USP) e conselheiro da Cinemateca Brasileira, curso ministrado por João Braga, especialista em história da arte pela Fundação Armando Álvares Penteado (Faap) e em história da indumentária e da moda pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, além de encontros com os estilistas Ronaldo Fraga, Isabela Capeto e Gisele Dias, e personalidades que fizeram parte da vida de Zuzu, como a atriz Elke Maravilha. O evento terá curadoria compartilhada de Hildegard Angel, criadora do Instituto Zuzu Angel e do Museu da Moda, Itaú Cultural, via núcleos Áudio Visual e Literatura e Educação e Relacionamento, e Valdy Lopes Jr, que também assina a direção de arte.

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