“Numa sociedade racista, não basta não ser racista, é necessário ser antirracista”. A frase de Ângela Davis, filósofa, negra e militante pela igualdade racial e de gênero, fechou o evento que nós, professores e professoras do Determinante Pré-vestibular, realizamos no último domingo, dia 17 de junho, sobre os 130 anos da Lei Áurea. Sim, é papel das instituições educativas promover o debate político e crítico sobre o racismo e as desigualdades raciais. Não só pela obrigatoriedade do ensino sobre a história e cultura afro-brasileira, que está em vigência desde 2003 – com base na Lei 10.639 – e pela existência de diretrizes curriculares para a educação das relações étnico-raciais, mas, sobretudo, porque, à revelia da diversidade cultural e da miscigenação presente no Brasil, a opressão contra o povo negro persiste camuflada em um discurso de democracia racial. Isso mostra o quanto precisamos avançar. Por isso, estamos comprometidos com a luta antirracista e não nos esquivamos, nem nos esquivaremos, desse papel, a despeito do desconforto que o assunto gera em um contexto em que a maioria é branca e, portanto, goza de incontáveis privilégios.
No auditório havia cerca de 600 alunos. Todos atentos, lápis e papel nas mãos, contentes pela oportunidade de ali estarem – apesar de um pouco ansiosos para o jogo do Brasil. A maioria deles, jovens entre 17 e 22 anos, brancos, e com perspectivas, anseios, medos e sonhos bem diferentes daqueles que permeiam a realidade da maioria dos jovens negros.
Essas estatísticas são apenas uma das maneiras como o racismo – e a consequente desigualdade racial – estrutura a sociedade brasileira e coloca em xeque a ideia de “democracia racial”, forjada e reforçada ideologicamente por meio de mecanismos políticos e simbólicos no decorrer da história do Brasil. Os 111 tiros de fuzil, disparados por policiais militares, contra CINCO jovens negros desarmados, no dia 28 de Novembro de 2015 na cidade maravilhosa, os 111 mortos no dia 2 de outubro de 1992, em um massacre na Casa de Detenção Carandiru, a execução de Marielle Franco, no dia 14 de março de 2018, também no Rio de Janeiro, dentre muitos outros exemplos, entretanto, não nos permitem continuar negando e silenciando o assassinato em massa, ligado ao racismo, ao legado da escravidão e, contraditoriamente, às políticas de segurança – elementos, em maior ou menor medida, responsáveis pelo genocídio dos jovens negros.
A desigualdade racial se expressa de forma sanguinária: os negros, sobretudo os jovens, são muito mais vulneráveis à violência física.
>> Proposta de Redação Exclusiva
É por isso que dizemos que o racismo é estrutural: sua existência independe do fato de ser intencional ou baseada em preconceitos. O racismo não se resume a preconceitos e a julgamentos apoiados em estereótipos – situação à qual as pessoas negras e sua cultura também são submetidas constantemente por meio dos mais inescrupulosos xingamentos, ofensas e até piadas. O racismo tem como foco, sobretudo, a ideia de privilégio, ou seja, a conquista de privilégios de um determinado grupo sobre outro que perpassa gerações e gerações. O racismo se estrutura na linguagem e no discurso, que conjuga, perigosamente, discriminação cultural e racismo biológico – por exemplo, na criminalização (e marginalização) da capoeira, ao final ao século XIX, do samba, até meados do século XX, e, mais recentemente, em 2017, na tentativa de criminalização do funk. O racismo se distribui no espaço geográfico, pois é visível não só a composição majoritária de brancos em lugares socialmente privilegiados, como também a de negros quando se traça o perfil dos moradores de habitações de alta vulnerabilidade.
Nas eleições de 2018, por exemplo, teremos a maioria de eleitores negros (54 por cento, segundo o IBGE). Candidatos negros e/ou que apoiam a luta antirracista por meio de políticas sociais relevantes e eficazes? Podemos contar nos dedos. Além disso, a condição subalterna das pessoas pretas e pardas, articulada às condições de classe e de gênero – articulação denominada pela sociologia de interseccionalidade –, intensifica profundamente os estigmas raciais. Além da violência física, enfrentam, os negros, a violência simbólica: a existência da imposição de um discurso social hegemônico que reconhece como legítimas apenas as formas “brancas” de se expressar – fato que desaloja os negros de sua humanidade e os destitui de suas subjetividades.
No palco, éramos sete professores e professoras, seis socialmente identificados como brancos. Esses números dizem de privilégios. É essencial haver, por parte de nós, brancos, não só o respeito à negritude, mas a consciência de nossa branquitude: um lugar hegemônico, de privilégios simbólicos e concretos que colaboram para construção social e reprodução do preconceito racial. Diante dessa realidade, não devemos nos silenciar, acomodados com nossas regalias e confortáveis com a crença equivocada de que existe igualdade racial. Esperamos, então, outros momentos, tão profícuos como aquele do último domingo, para ampliarmos, ainda mais, o debate a favor da luta antirracista. Não queremos práticas educativas que calam e ignoram a história e a luta do povo negro.
Maria Raquel Dias Sales Ferreira é professora de Português do Determinante Pré-Vestibular.
.