Sujeira escondida

Na praça principal de Barra Longa, casas foram reformadas pela Samarco em projeto apresentado como modelo. Exceto uma, de dois andares, onde optou-se pela maquiagem

Mateus Parreiras (textos) e Gladyston Rodrigues (fotos) - Enviados especiais

Barra Longa - A reforma da Praça Manoel Lino Elói, a principal de Barra Longa, é tida pela Samarco como um modelo de recuperação dos estragos causados pela onda de rejeitos de mineração liberada pela Barragem de Fundão, operada pela mineradora em Mariana. Mas, o que para muitos pode significar o retorno às atividades de lazer e aos encontros sociais, para o comerciante Antônio Luiz Gonçalves, de 58 anos, é encarado como uma afronta entalada há um ano na garganta. Dos 21 imóveis inundados pela lama no entorno da principal praça da cidade, a pousada que ele tinha à beira do rio é a única que não foi recuperada.

Pelo contrário, enquanto operários se esforçaram para limpar, pintar e retocar as edificações e o espaço público para a nova inauguração no dia 30, último domingo, a única medida tomada foi tampar o sobrado onde funcionava a pousada com tapumes de metal, que escondem os danos sofridos e o barro ainda acumulado. "Fizeram uma maquiagem na praça, nas casas e, para que a minha pousada não deixasse feia a obra que eles (a Samarco) vão apresentar no aniversário de um ano do desastre, simplesmente tamparam tudo, para que ninguém veja", afirma.

A lama chegou a 1,70 metro de altura na praça, que fica na área de várzea do Rio do Carmo. Mas a marca vermelha desse nível desapareceu das construções depois de pinturas novas, inclusive nos troncos das palmeiras, que receberam uma demão de tinta branca. Como o sobrado de Antônio Luiz tem dois andares, só o que aparece acima dos tapumes é a parte onde ele morava, mantinha alguns quartos para alugar e que, apesar de abandonada, ainda está bonita, pintada de verde e com vasos de flores dependurados nas janelas.

"Venho aqui todos os dias. Tem vezes que nem sei o que estou fazendo. Levei quatro meses para digerir a tristeza de ter perdido meu negócio. Minha mulher passou mal da última vez"
Antônio Luiz Gonçalves, comerciante, 58 anos

O que os tapumes escondem, no entanto, é mais uma demonstração da brutalidade da inundação. Atrás da cerca, fica a varanda onde hóspedes e pessoas da cidade se sentavam à noite, às mesas do bar do estabelecimento. Um metro de lama soterrou esses móveis de estrutura de metal e pedras pesadas. Engradados de garrafas de bebidas, porta-guardanapos, bandejas e outros utensílios usados para o funcionamento do bar ficaram presos na massa de rejeitos solidificados.

Das janelas do primeiro andar, ainda abertas, a cobertura de lama petrificada envolveu televisores, armários, camas, criados mudo, armários, camas e colchões, arruinando tudo. "Tinha 17 leitos na minha pousada e a nossa ocupação era total de novembro a janeiro. Perdi tudo que estava nos quartos inferiores", conta Antônio Luiz. Para que animais não entrem na edificação abandonada, um fino tapume de madeira foi pregado à porta principal. Lá dentro, a lama entupiu corredores, quartos, banheiros e cozinha. "Venho aqui todos os dias. Tem vezes que nem sei o que estou fazendo aqui. Levei quatro meses para digerir a tristeza de ter perdido meu negócio, com o qual pagava a faculdade do meu filho e mantinha a minha família. Já a minha mulher veio aqui cinco vezes, na última passou mal e tivemos de levá-la às pressas ao médico. A pressão dela tinha disparado", afirma.

COZINHA PETRIFICADA Na cozinha, Antônio Luiz, ainda tenta desgrudar pratos e panelas presos aos rejeitos endurecidos, enquanto perambula com o olhar triste entre as geladeiras, fogões e equipamentos elétricos que tinha para preparar as refeições de hóspedes e clientes. Para ele, como a Samarco tinha como meta entregar a praça até completar um ano da tragédia, casos como os dele foram enquadrados em indenizações que só serão decididas futuramente, talvez até na Justiça. "Procuro sempre os representantes da empresa para saber se vão reformar minha pousada, se vão comprar ela de mim, o que será feito. Mas sempre dizem que vão enviar alguém para conversar comigo e essa pessoa nunca chegou", afirma.

A parte dos fundos da edificação apresenta uma rachadura grande que vai do chão ao telhado, e onde cabe uma mão esticada. Mas o comerciante garante que a casa não está condenada. "Essa é somente uma rachadura que houve na emenda da minha antiga lavanderia com o resto da casa, mas não compromete nada. A Defesa Civil chegou a interditar tudo, mas depois retirou a interdição. Com um reforço de gabiões (gaiolas de metal preenchidas com pedras) é possível sustentar a casa com tranquilidade", disse.

Enquanto sua situação não é resolvida, a Samarco alugou para o comerciante um edifício onde ele montou um restaurante e uma casa na cidade. "O problema é que até hoje não recuperei o movimento, por causa das obras mesmo. Fica uma barulhada infernal aqui, por causa dos serviços e os cavaletes inibem as pessoas de virem almoçar", reclama. De acordo com Antônio Luiz, o prejuízo poderia ter sido menor se as informações fornecidas pela própria mineradora no dia do acidente tivessem sido mais precisas. "Quando soubemos do estouro da barragem, eu liguei para a Samarco e o encarregado disse que não precisava de me preocupar, porque a lama passaria a 30 centímetros de altura dentro da calha do rio. Quando foi de madrugada, aquilo veio como uma concreto espalhando e nos empurrando para a praça adentro. Não deu para salvar nada", lembra.

A reforma, da praça, ele reconhece ser bem-vinda, mas queria ter de volta a pousada para participar disso com a comunidade. "Aqui era o local de lazer de Barra Longa. Tínhamos os bares, danceterias, casas de show, pista de caminhada. Estamos há quase um ano sem referência de lazer na cidade", disse.

Depois do peixe, a vítima é o pescador


Naque - Do alto do barranco onde pescava desde a época em que o balde de minhocas era pesado demais para segurar numa só mão, o aposentado José Gonçalves Rodrigues, hoje com 56 anos, observa uma língua escura de poluição chegar por um córrego e invadir o Rio Santo Antônio. A mancha de contaminação parece um vazamento de petróleo, tão intensa sua coloração, e só se dissolve muito adiante nas águas do manancial.

"Jogam esgoto aqui dia e noite, desmatam, poluem e nós, pescadores, somos os únicos a ser ameaçados por multas e apreensão do nosso material de sobrevivência"
José Gonçalves Rodrigues, aposentado, 56 anos

Mais à frente, uma draga suga a areia do fundo do leito, que já não tem mais matas ciliares no encontro com o Rio Doce, em Naque, no Vale do Aço. O olhar de José é de indignação, pois vê tantas agressões ao rio, mas o único que é proibido de exercer suas atividades nas águas é justamente o pescador. Desde ontem, atividade está novamente proibida, para o período de reprodução das espécies (defeso), mas sem data para liberação. O motivo é preservar os peixes e mariscos que conseguiram escapar da onda de rejeitos de mineração despejados nos corpos hídricos pelo rompimento da Barragem do Fundão.

"Jogam esgoto aqui dia e noite, desmatam, poluem e nós, pescadores, somos os únicos a ser ameaçados por multas e apreensão do nosso material de sobrevivência", reclama o aposentado, que junto com outros pescadores ainda enfrenta a água contaminada para continuar a fisgar os peixes que encontra. As águas do Santo Antônio eram consideradas as mais limpas da bacia, mas a onda de rejeitos que veio do Rio Doce invadiu o manancial um quilômetro correnteza acima. "Morreram peixes demais. Depois disso, teve muito peixe subindo, a gente via, mas a pesca caiu demais. Antes, em um dia, conseguia pegar oito peixes. Dava até cinco quilos. Agora, desde que a lama passou, não passa de 900, 500 gramas", constata.