Fauna resgatada

Poucos após a tragédia, comunidade ribeirinha salvou e acondicionou em tanque peixes que agonizavam no Rio Doce. Passado um ano, os que sobreviveram ainda são criados sem ajuda

Mateus Parreiras (textos) e Gladyston Rodrigues (fotos) - Enviados especiais

Governador Valadares e Resplendor - Primeiro, se alastrou a mancha vermelha de minério, saturando as corredeiras do Rio Doce. Atônitos, buscando dimensionar melhor a tragédia por entre mangueiras e árvores da mata ciliar, pescadores e donos de terras do distrito valadarense de Baguari se impressionaram ainda mais quando por toda parte começaram a emergir peixes mortos*1 ou agonizando na superfície das águas contaminadas. "Parecia que estavam sufocando dentro do rio e que tentavam sair para respirar", lembra-se o aposentado Éber Geraldo da Silva, de 53 anos. Condoído pelo desastre ambiental provocado pelo rompimento da Barragem do Fundão, ele e outros moradores do distrito improvisaram uma operação de resgate com seus barcos, transportando milhares de exemplares do Rio Doce para tanques de piscicultura.

O feito heroico ainda é lembrado nas conversas pelas ruas, bares e barrancas do rio, mas quase um ano depois, parece só ter sido valorizado mesmo por aquela comunidade. "Até hoje, ninguém do governo ou da Samarco apareceu aqui para ajudar, para saber como estão os peixes ou para nos orientar sobre quando é que vamos soltar de novo no rio", critica o aposentado.

"Até hoje, ninguém do governo ou da Samarco apareceu aqui para ajudar, para saber como estão os peixes ou para nos orientar sobre quando é que vamos soltar de novo no rio"
Éber Geraldo da Silva, aposentado, 53 anos

O tanque onde mantém os peixes é uma estrutura de cimento, com cerca de 20 metros de comprimento, seis de largura e 1,80 metro de profundidade. As águas verde-escuro mal deixam visualizar os espécimes. Apenas quando Éber atira a ração, a água parece entrar em ebulição, tamanha a quantidade de bocas tentando comer. "O que achamos de peixe vivo no Rio Doce está aqui dentro desse tanque. Tem de todo tamanho, e já se reproduziram. Aqui tem tambaqui, pacu, curimatã, traíra, cascudo e outros que nem sei direito quais são", conta.

Os custos para manter os animais são elevados e os recursos de que Éber dispõe para isso vêm de sua aposentadoria por invalidez. "Preciso usar duas bombas para manter o oxigênio da água. Uma queimou há um tempo e fiquei apertado para fazer o conserto. Comida para eles tem de ser ração. Tudo isso tiro da aposentadoria, e me faz bastante falta, porque tenho de manter a casa, os filhos e netos", conta. "Estou criando esses peixes para o Rio Doce. Para o povo de Valadares, mas preciso de ajuda urgente. E o pior é que não dá para soltar ainda, porque o rio ainda está muito sujo. Quem sabe daqui a um ano, mas não sei como fazer para manter os bichos por mais um ano, aqui, sozinho, sem nenhum apoio", desabafa.

Ele conta que a operação de resgate dos espécimes agonizantes durou cerca de sete horas e mobilizou diversos barcos da comunidade. "Teve gente que veio da rua, teve pescador, gente que trabalha nas dragas de areia, todo mundo quis fazer sua parte. Se ninguém fizesse nada, esses peixes hoje estariam mortos", considera Éber.

População com sede à beira do Rio Doce


A aposentada Maria Luíza dos Santos, de 64 anos, mora a seis metros do muro do Serviço Autônomo de Abastecimento e Esgoto (SAAE), no Centro de Governador Valadares. A proximidade com a autarquia municipal não lhe dá garantia de água satisfatória*2. Pelo contrário. Desde que o Rio Doce foi contaminado pelos rejeitos de mineração da Barragem do Fundão, em Mariana, o leito se tornou vermelho e o que desce pelas torneiras tem um aspecto que é rejeitado por grande parte da população. "A água do rio é de péssima qualidade. Deve ser por causa da lama que sai com cor amarela, e muito fedorenta. O cheiro é muito ruim, de dar ânsia de vômito na gente. Não dá nem para escovar os dentes, lavar o rosto ou os alimentos. Quem tem coragem de fazer isso?", indaga. Um ano depois de o rompimento da barragem ter poluído a Bacia do Rio Doce, a reclamação é comum à de muitos valadarenses, principalmente moradores e comerciantes da área central, próxima ao rio.

"A água do rio é de péssima qualidade. Deve ser por causa da lama que sai com cor amarela, e muito fedorenta. Dá ânsia de vômito. Não dá nem para escovar os dentes, lavar o rosto ou os alimentos"
Maria Luíza dos Santos, aposentada, 64 anos

Na casa da aposentada vivem ela e um irmão. A solução encontrada por eles desde que a Samarco parou de fornecer água mineral foi a mesma de boa parte dos consumidores: comprometer o orçamento doméstico para comprar os galões eles mesmos. "A gente tem de sair cedo para comprar o galão para a casa. E o pior é que, como tem tanta gente assim comprando, o preço só aumenta. Se demorar a comprar, fica até sem, porque outra pessoa passa e leva. Quando acontece isso ou a gente espera chegar mais água e economiza, ou tem de pagar mais caro ainda em padaria ou bar", disse.

Em Valadares, quem tem condições tem recorrido à perfuração de cisternas e poços, mesmo sem o devido licenciamento municipal e outorga da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). "Aqui está desse jeito. É muita humilhação para nós. Os homens grandes e poderosos lá da mineração acabaram com o rio e com a nossa água. Agora, só quem é grande e poderoso pode mandar furar um poço. A gente que é pobre tem de gastar o que não tem para sobreviver com o básico", critica Maria Luíza.

A mulher ainda teme as enchentes, que eram frequentes tormentos para quem mora na beira do Rio Doce. "Antes, a gente tinha medo de a cheia deixar a gente preso ou entrar na nossa casa enquanto todo mundo dormia. Agora fico mais com medo de vir junto mais dessa lama que deixou o rio vermelho e entrar aqui dentro das nossas casas", disse.

Aldeia perde cultura e meios de subsistência


Após o estouro da Barragem do Fundão, em Mariana, e a devastação do Rio Doce por resíduos de minério, a produtora rural Ana Maria dos Santos Estevão, de 68 anos, se viu de uma só vez alijada de todas as suas fontes de renda. Nascida na aldeia dos índios Krenak, em Resplendor, a mulher não pode mais pescar para vender ou consumir os peixes, uma vez que, quase um ano depois da tragédia, não foram feitos exames conclusivos sobre a contaminação da fauna e da flora. Mesmo que pudesse vender, ela conta que tudo que vem da aldeia tem sido visto com desconfiança pelo mercado. Isso inviabiliza quase tudo o que a comunidade tradicional produz para sobreviver. "Primeiro, foi o peixe. Agora, com essa seca brava, dois 'correguinhos' que passavam aqui secaram e o gado tem de beber do rio. Ninguém mais quer comprar nosso queijo, nem as verduras, com medo dessa água", afirma.

De acordo com ela, antes da tragédia socioambiental que se originou na área da mineradora Samarco, em Mariana, o leite das vacas rendia a produção artesanal de cinco queijos por dia. "Vendia cada um a R$ 15, e com isso tinha mais R$ 75, que ajudavam demais aqui na minha casa, onde vivemos meu filho, meu marido e eu. Mas ninguém quer comprar mais nada que entra nesse rio. Queria então receber uma ajuda. Fui em Resplendor pedir isso lá na prefeitura, falei com o pessoal da empresa (Samarco) e vamos ver se conseguem nos dar alguma coisa, porque até hoje só o que fizeram foi nos tirar", reclama.

E não foi apenas a sobrevivência dos Krenak a ser afetada pela lama que escapou da barragem e poluiu o manancial que passa ao longo da aldeia. Aquele ambiente fazia parte das relações sociais e ritualísticas da comunidade. As rochas das margens do Rio Doce eram um ponto de encontro, onde as pessoas por gerações se encontravam para tomar banho e pescar. "É um rio muito importante para nós aqui, ainda mais com esse calor todo. Uma tradição antiga de toda a comunidade se encontra ali. Quando era menina ficava ali. Os meus filhos também. Agora, isso acabou", lamenta.