Jornal Estado de Minas

ENEM

Daniel Cara: 'O Enem não está prejudicado, mas está sob risco'

Em Brasília, o mês de novembro de servidores do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), começou com a debandada de colegas, inconformados com suposta ingerência na construção do exame. Quase paralelamente, mas de Dubai, nos Emirados Árabes Unidos, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) falou, orgulhoso, sobre o teste começar a ter “a cara do governo”.



Embora Milton Ribeiro, ministro da Educação, tenha garantido, ontem, que não há interferência na prova, a declaração presidencial causou indignação. Daniel Cara, professor da Faculdade de Educação Universidade de São Paulo (USP) e dirigente da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, se preocupa com a intervenção em um teste que define como “cientificamente calibrado”, e teme o enfraquecimento do Enem enquanto política de acesso ao ensino superior.


“É uma fala de quem assume que interveio na prova e de quem assume que tem compromisso com uma agenda ideológica. Bolsonaro acusa os servidores do Inep e o banco de itens (do exame) de fazer aquilo que os servidores não fazem, mas que ele faz: promover uma ideologização da prova do Enem”, diz Cara, ao Estado de Minas. Segundo ele, eventuais mudanças nas questões do teste, marcado para os dois próximos domingos (21 e 28) não fazem a qualidade cair, mas acendem um alerta. Cara defende o afastamento do atual presidente do Inep, Danilo Dupas, e reivindica protagonismo dos servidores de carreira da entidade nas tomadas de decisão. “O que está em risco nesta edição é a questão da logística, mas os estudantes não podem se preocupar com isso”, assegura, ao tratar das provas que se avizinham.

Em meio a denúncias de servidores do Inep sobre censura e retirada de questões do Enem, surge Bolsonaro dizendo que as questões do exame 'começam a ter a cara do governo’. Como o senhor interpreta essa declaração? 

É uma fala de quem assume que interveio na prova e de quem assume que tem compromisso com uma agenda ideológica. Bolsonaro acusa os servidores do Inep e o banco de itens (do exame) de fazer aquilo que os servidores não fazem, mas que ele faz: promover uma ideologização do Enem. Qualquer seleção utiliza como referência o conhecimento científico estabelecido. É isso que Bolsonaro não aceita, porque é contrário à ciência e obscurantista. É preocupante quando ele diz que o Enem começa a ter a cara do governo, porque é um governo anti-ciência.



Para tranquilizar quem vai prestar a prova: o exame sofreu, sim, segundo um servidor (conforme o "Fantástico'', da TV Globo), uma exclusão de itens, mas que foram substituídos por outros do banco de itens. Não tem como fazer uma prova como o Enem, que usa a metodologia de Teoria da Resposta ao Item (TRI), não calibrada pela TRI. O governo teve que buscar, no banco de itens, as questões. Não há crise de falta de qualidade da prova. Esses itens foram substituídos por outros que já constam da calibragem do Inep.

Quando Bolsonaro busca ideologizar, provavelmente as questões substituídas pressionam um governo obscurantista. Então, troca por questões mais ‘neutras’. Não cai o grau de dificuldade da prova, mas isso significa uma intervenção em um exame cientificamente calibrado. É preocupante. Nenhuma questão foge do que é consenso consagrado nas áreas científicas cobradas.

O ministro Milton Ribeiro garantiu que o Enem está pronto e negou a possibilidade de interferência na prova. Apesar disso, o senhor demonstra preocupação com a fala de Bolsonaro. O que é possível fazer para investigar se há alguma intromissão?

O Enem não está prejudicado — está finalizado — mas está sob risco (enquanto política pública). Em 2019, eles começaram o ataque ao banco de itens. O que está em risco nesta edição é a questão da logística, mas os estudantes não podem se preocupar com isso. A qualidade da prova está mantida. A sociedade civil deve solicitar, via Lei de Acesso à Informação (LAI), informações sobre o Enem e todos os outros processos do Inep.



É preciso que Ministério Público, Defensoria Pública da União, Tribunal de Contas da União (TCU), Congresso e outras instituições que têm o dever de fiscalizar o poder Executivo e exigir a garantia dos direitos, devem acionar o Executivo questionando sobre o que acontece. Danilo Dupas, diante de tudo o que fez — e os servidores deram informações à sociedade — tem que ser afastado da presidência, sob risco de termos prejuízos não só no Enem, mas em qualquer coisa que aconteça no Inep, como os censos escolares e o Exame Nacional de Desempenho dos Estudantes (Enade).

O senhor disse temer o enfraquecimento do Enem como ferramenta de acesso às universidades. O que fazer para corrigir essa rota?

O Inep tem que ser separado do Ministério da Educação (MEC). É uma autarquia, e não um órgão subordinado ao MEC. O Inep tem que se separar e ter uma gestão própria, essencialmente técnica, privilegiando os servidores de carreira. Tivemos, em todos os governos que passaram, problemas na gestão do Inep. No governo Temer, um artigo científico de servidores foi censurado. Agora, no governo Bolsonaro, tem acontecido tudo o que temos visto. A estrutura de gestão precisa ser feita por quem conhece — e tem experiência — no órgão. Os servidores do Inep, que lidam com dados e com inteligências sobre políticas públicas, têm que ser reconhecidos como carreiras de Estado. Isso significa mais estabilidade e processo de valorização que dá mais força para resistir a percalços democráticos como a eleição de Bolsonaro.

Será a edição com o menor número de candidatos desde 2007. Isso acende uma luz para possíveis tentativas de esvaziar o exame?

A tentativa de esvaziar o exame começa em 2019. Bolsonaro é contra o conhecimento científico estabelecido, e entende que as ciências obstruem seu projeto de poder. Ele tem ojeriza à democratização das universidades; no ano que vem, temos a revisão da política de cotas, que é um acerto e tem tido ótimos resultados. Mas, para ter acesso às universidades, você passa pelo Enem. É extremamente preocupante a queda no número de inscritos. Isso é complementado pelo problema da gratuidade: os que faltaram por causa da pandemia não tiveram a isenção mantida.



O resultado é que foram desestimulados a prestar o exame. Mesmo que tenha sido revertido (o STF garantiu a isenção aos estudantes pobres que se ausentaram em 2020), quando a gente conversa com estudantes e acompanha o que acontece nas redes sociais, existe um desalento. Diante do desgoverno na pandemia, as necessidades econômicas se impuseram para a maior parte dos jovens de escolas públicas que estão prestando o Enem.

Eles estão tendo que ingressar prematuramente no mercado de trabalho, porque suas famílias têm necessidades. Tudo isso pesa. O resultado completo é que as medidas do governo, diretamente relacionadas ao Enem, ou socioeconômicas, em geral, criam uma obstrução ao sonho das camadas populares de ingressar na universidade. E não é um sonho; é um direito.

audima